Nos últimos dias, tomou conta do noticiário e das
principais mídias sociais a informação de que havia sido publicado um estudo que teria demonstrado um grande benefício
da associação de Hidroxicloroquina e Azitromicina no tratamento de pacientes
infectados pela nova doença emergente, a COVID – 19.
Imediatamente, políticos, profissionais das mais variadas áreas
e principalmente o público leigo festejaram a nova descoberta com muito
entusiasmo.
No meio médico, as opiniões ficaram divididas, aclamada por
certos profissionais e muito criticada por alguns dos mais eminentes
especialistas.
O encorajamento para uso de Hidroxicloroquina nos pacientes
com COVID – 19, partiu da premissa demonstrada em uma pesquisa publicada por chineses que demonstrou a
capacidade da Hidroxicloroquina de inibir a SARS-COV – 2 “in vitro”, devido ao
seu potencial imunomodulador. Essa capacidade foi superior a cloroquina,
testada anteriormente.
Diante de algo plausível, pesquisadores passaram a questionar
sobre o efeito clínico dessa medicação em pacientes com COVID- 19, iniciando
protocolos de pesquisa.
Quando uma nova evidência é publicada, precisamos ser céticos e avaliá-la
com o rigor metodológico que ela requer. Essa avaliação sempre parte da
premissa da hipótese nula que define que “um
fenômeno só existe a partir do momento que é demonstrado”. Refutada a
hipótese nula, consideramos o fenômeno existente, aceitando a hipótese
alternativa.
Além disso, frente a esses fatos devemos nos questionar. O
entusiasmo é proporcional à qualidade da evidência?
O
artigo francês.
Qual a
conclusão do artigo?
“Despite its small sample
size our survey shows that hydroxychloroquine treatment is significantly
associated with viral load reduction/disappearance in COVID-19 patients and its
effect is reinforced by azithromycin”.
Com esse resultado, devemos avaliar a validade interna do estudo quanto a erros sistemáticos.
Viés ou erros sistemáticos se referem a uma série de erros
que podem ocorrer em qualquer etapa da pesquisa que podem tornar os resultados
da mesma espúrios.
No referido estudo, pode-se perceber que não houve randomização, o que o torna suscetível a um risco elevado
de viés de confusão. A randomização
torna os grupos homogêneos, balanceando possíveis fatores confundidores entre
os grupos. Ao analisarmos a tabela 1 da presente análise, podemos verificar desproporções
nas características entre os grupos.
Outro detalhe que pode ser percebido é a confusão entre
grupo intervenção e grupo controle. Estranhamento, pacientes que deveriam ser
excluídos do estudo de acordo com critérios de exclusão, passaram a fazer parte
do grupo controle, criando mais heterogeneidade entre os grupos. Além disso, pacientes de outros centros, foram
alocados exclusivamente para o grupo controle.
Pacientes dentro dos critérios de exclusão, assim como
aqueles que recusaram-se participar do estudo não deveriam ter sido incluídos
na análise. Sabe-se que os doentes que se recusam a participar de ensaios
clínicos geralmente tendem a ser menos graves do que aqueles que participam,
gerando viés de seleção.
Prosseguindo, nos deparamos com um estudo “open label”, ou
seja, aberto, muito suscetível a viés de
aferição do desfecho. Classicamente, estudos abertos que fazem uso de hard
endpoints como mortalidade geral, anulam este viés pela objetividade do
desfecho. Porém, com um desfecho substituto e interpretável não podemos
garantir que isto não possa ter ocorrido devido a ausência de cegamento de
pesquisadores e dos responsáveis pela interpretação do desfecho. Um estudo sem
cegamento também aumenta a possibilidade de
viés de desempenho, o uso de Azitromicina apenas posteriormente é um
indicativo disso. É bem provável que os indivíduos alocados nesse grupo tenham sido mais bem assistidos.
A
ausência da intenção por tratar.
Um ensaio clínico deve ser sempre realizado com a intenção
de tratar, isso garante que controle foi analisado como controle independente
do que ocorreu. Garante também que tratamento
deva ser analisado como tratamento, independente da tomada ou não da medicação por parte do indivíduo alocado no grupo. No estudo 6 pacientes do grupo Hidroxicloroquina
saíram da análise. 3 porque foram transferidos para UTI, outro porque foi transferido
para outro serviço e 1 que faleceu. Isso caracteriza uma análise por protocolo
e tende a subestimar os resultados do estudo. Não houve perda de follow-up
porque os pacientes continuaram disponíveis para serem avaliados. O paciente
que faleceu não foi incluído na análise.
O
desfecho substituto
Desfechos substitutos geralmente são variáveis laboratoriais.
São tidos apenas como geradores de hipóteses. Não existe uma necessária correlação
entre eles e desfechos clínicos.
No referido artigo, o uso da negativação da PCR viral não
está associado necessariamente a melhoria dos sintomas. Diferentemente, o
estudo que envolveu o uso de Kaletra (combinação lopinavir/ritonavir),
demonstrou uma associação negativa para desfechos clínicos.
Avaliação
quanto aos erros aleatórios.
Um estudo pode estar suscetível aos efeitos do acaso.
Acasos e viéses se entrelaçam proporcionando resultados falsos.
Dentro desse aspecto devemos observar dois tipos de erros.
Erro do tipo 1 – na linguagem médica um falso positivo. Erro do tipo 2 – um falso
negativo.
O estudo necessitaria de arrolar cerca de 48 pacientes para
apresentar um poder estatístico de 85 %, assumindo uma taxa de eficácia de 50 %
da Hidroxicloroquina no grupo intervenção com negativação do PCR no sétimo dia.
Observa-se que o estudo arrolou cerca de 36 pacientes, demonstrou
uma diferença de eficácia de 87,5 % se compararmos o grupo Azitromicina mais
hidroxicloroquina ao grupo controle. Um resultado que certamente destoa do
verdadeiro poder estatístico do estudo. Analisando também a probabilidade
pré-teste do estudo refutar a hipótese nula, uma eficácia de 50 %, parece um
resultado “bom demais para ser verdade”.
Qual a
conclusão?
Em conclusão temos um estudo de alto risco de viés e erros
aleatórios com uso de desfecho substituto.
Utilizando
o sistema GRADE qual seria o nível da evidência?
Seguindo a tabela abaixo, provavelmente nível D de
evidência.
Qualidade
da evidência pelo Grade.
A – Alta
|
Há
forte confiança de que o efeito verdadeiro aproxima-se do efeito estimado.
|
B – Moderada
|
Há
moderada confiança na estimativa do efeito. O verdadeiro efeito está próximo
daquele estimado, mas existe possibilidade de ser substancialmente diferente.
|
C – Baixa
|
A
confiança na estimativa do efeito é limitada. O verdadeiro efeito pode ser
substancialmente diferente daquele estimado.
|
D - Muito Baixa
|
Há
pouca confiança na estimativa de efeito. O verdadeiro efeito provavelmente é
substancialmente diferente do estimado.
|
Qual a
recomendação quanto a estes achados?
Estudos com alto poder estatístico tendem a ser negativos. Estudos pequenos tendem a ser positivos. Por isso particularmente,
acredito que a probabilidade pré-teste da Hidroxicloroquina funcionar para
COVID-19 seja muito baixa, o que não exclui a possibilidade de estudos mais bem
delineados ser realizados. Presumo que num ambiente onde a miopia cientifica
tomou conta, inclusive daqueles que deveriam ser mais céticos e racionais, o
uso “off label” fora de protocolos de estudo já deva estar sendo realizado. No
meu entender, dentro do princípio do ônus da prova mesmo que enfretando uma situação
de pandemia, porém com uma doença de baixa letalidade, não há justificativa
para isso. A recomendação para uso da medicação é extremamente fraca. Devemos
preservar o rigor científico e dar tempo a ciência, com intuito de resguardar a
segurança dos próprios pacientes. Aguardemos os próximos capítulos.