A medicina baseada em
evidências (MBE) foi um termo moderno derivado da epidemiologia clínica
anglo-saxônica cunhado por David Sackett e seus colaboradores da Universidade
de McMaster. Ela preconiza que as decisões clínicas devem ser embasadas no
melhor grau de evidência obtido a partir de trabalhos científicos relacionados
a questão clínica de interesse.
Com a evolução da pesquisa
científica e popularização dos conceitos oriundos da MBE, a comunidade médica
passou a necessitar de dominar conhecimentos epidemiológicos e bioestatísticos
básicos para interpretação das diversas evidências.
Na década de 90, foram publicadas
interessantes análises a respeito do conhecimento médico e a avaliação da
prática baseada em evidências. Destaca-se aqui um estudo publicado por Mccoll
A, que na região de Wessex, Inglaterra, avaliou as diversas habilidades
relacionadas à MBE de uma amostra referente a 25 % dos médicos generalistas
desta localidade. Foi constatado que embora 70 % destes profissionais
reconhecessem que a prática baseada em evidência melhorava o cuidado com o
paciente, apenas 50 % realmente a praticavam. Ademais, apenas cerca de 30 % dos
médicos julgavam-se bons entendedores de conceitos tão importantes para
interpretação de artigos e para a prática clínica como risco absoluto, risco
relativo ou número necessário a tratar (NNT).
No ano de 2007, estudo
publicado na revista americana de medicina (JAMA) com objetivo de avaliar o
conhecimento de médicos residentes a respeito de bioestatística de tradicionais
serviços de medicina interna do estado de Connecticut, Estado Unidos, observou
que a maioria dos residentes apresentaram dificuldades em entender e
interpretar conceitos básicos como definição e reconhecimento de viés,
interpretação do significado do valor P, intervalo de confiança ou até como
reconhecer um estudo de caso-controle.
Diante
dessas contradições, quais as maiores barreiras a pratica baseada em evidências?
É possível enumerar várias
barreiras a prática baseada em evidências, dentre elas, dificuldade de acesso
aos estudos científicos por parte dos tomadores de decisão, falta de tempo para
busca de estudos científicos, falta de acesso à pesquisa atualizada, recursos
limitados para uso das evidências, inúmeros estudos com qualidade questionável
e habilidades limitadas de avaliação crítica por parte dos profissionais de
saúde.
Contudo, dentre outras
questões de cunho epidemiológico, na minha concepção a principal barreira a
prática da MBE é o uso da experiência anedótica para afirmar que determinada conduta
é eficaz. Este fenômeno está ligado ao viés de confirmação que é motivado por
experiências prévias que supostamente deram certo. Este, não é um ato intencional. Ele é
explicado cientificamente, pois tendemos a nos lembrar mais de situações
emocionalmente fortes do que de revisões sistemáticas da Cochrane, entretanto é
sabido que esta prática é bem menos eficiente do que práticas cientificamente
embasadas. Em outra situação, podemos elencar condutas baseadas em plausibilidade
biológica, que com exceção daquelas aplicáveis ao “paradigma do paraquedas”,
constituem-se numa grande barreira a prática da MBE. Isto porque nem tudo que é plausível é eficaz,
tanto é que a plausibilidade biológica é apenas um dos critérios de causalidade
de Hill.
Ironicamente, Isaacs D
publicou no British Medical Journal, um curto artigo denominado de “Seven
alternatives to evidence based medicine” elencando de forma paródica situações
que competem com a MBE, influenciando na decisão dos clínicos, como a medicina
baseada em veemência, ou medicina baseada em eloquência, entre outras.
Como
categorizar as evidências científicas?
Devido ao volume de literatura
cientifica ter aumentado significativamente nas últimas décadas, foi necessário
criar uma categorização dessas evidências. O intuito dessa categorização foi
estabelecer quais seriam os estudos válidos para nortear uma conduta e o peso
de cada um deles. Surgiram então as pirâmides de evidências que tem estrutura
dinâmica, assim como as tabelas dos níveis de evidência. A figura 1, logo
abaixo, representa um exemplo interessante dessa pirâmide, demonstrando a
presença dos estudos primários na base, com as revisões sistemáticas e
meta-análises no topo da pirâmide, após a informação filtrada. Contudo, este
modelo serve apenas para os estudos envolvendo tratamento e prevenção, onde as
revisões sistemáticas e meta-análises correspondem ao nível I de evidência,
seguida dos grandes ensaios clínicos randomizados com mais de 1000 pacientes,
estes com nível II de evidência. Como supracitado, a pirâmide é dinâmica e tem
correlação com a pergunta de interesse feita. Em questões envolvendo fatores de
risco, as revisões sistemáticas de coortes clássicas representam o nível I de
evidência. A depender da questão de interesse uma revisão sistemática e
meta-análise de estudos observacionais, certamente têm um impacto diferente de
um grande estudo clínico randomizado. Não obstante, uma revisão feita por
Loannidis et al, descobriram que as meta-análises e os grandes ensaios clínicos
podem discordar em até 23 % das vezes.
Interpretações errôneas dessa
pirâmide podem gerar distorções. Há críticas bem embasadas quanto as limitações
desse modelo sistemático e de como os profissionais podem interpretá-lo. Sabe-se
que a qualidade da evidência se associa ao tamanho amostral. Por isso quando
nos deparamos com doenças raras, recém descobertas ou situações onde princípios
éticos não tornam factível uma randomização, a qualidade da evidência será
fraca, fazendo com que nossas condutas sejam embasadas pelo paradigma do
paraquedas ou por estudos de menor nível de evidência, tais como prospectivos
não randomizados, caso-controle, estudos retrospectivos ou até relatos de caso.
Recentemente foi proposta uma nova pirâmide de evidência, disposta na Figura 2,
que acertadamente coloca as revisões sistemáticas e meta-análises fora da
pirâmide, funcionando como uma lente da qual as evidências primárias são
vistas.
Figura
1.
Pirâmide de evidências.
Figura
2.
Proposta de nova pirâmide de evidências
Fonte: Murad MH, Asi N, Alsawas M, Alahdab F, 2016 Aug; 21(4):125-7
Quais
sãos os passos essenciais para praticar Medicina Baseada em Evidências?
Em um excelente ensaio
denominado de “Como praticar medicina baseada em evidências”, El Dib RG, propõe
os seguintes passos.
1. Transformação da
necessidade de informação (sobre prevenção, diagnóstico e tratamento) em uma
pergunta que pode ser respondida.
2. Identificação da melhor
evidência para responder essa pergunta, ou seja, identificar o melhor desenho
de estudo para determinada questão clínica.
3. Acesso as principais bases
de dados da área da saúde, como Cochrane Library, MEDLINE, EMBASE, SCIELO,
LILACS, em busca de estudos bem delineados.
4. Por fim, a realização da
análise crítica da evidência em relação à validade interna, relevância e
aplicabilidade.
Em conclusão, fica claro que é
necessário ainda maior conhecimento por parte dos profissionais de saúde a
respeito de conhecimentos específicos da epidemiologia clínica para facilitar a
aplicação da MBE. Dominar principalmente conhecimentos que se referem à análise
crítica de evidências também é fundamental. A MBE não propõe a substituição da
experiência clínica, mas sim que essa seja embasada por evidências científicas
de qualidade. Nesse processo, as
preferências dos pacientes também devem ser levadas em consideração, buscando
sempre uma decisão compartilhada.
Referências
· Mccoll
A, Smith H, White P, Field J. General practitioner’s perceptions of the route
to evidence-based medicine: a questionnaire survey. BMJ 1998; 316:361 – 365.
· Windish
DM, Huot SJ, Green ML. Medicine residents understanding of the biostatistics
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· Nutley
SM, Walter I, Davies HTO. (2007). Using evidence: How to research can inform
public services. Bristol, UK: Policy Press.
·
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· CooK
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Loannidis
JP, Cappelleri JC, Lau J. Issues in comparisons between meta-analyses and large
trials. JAMA. 1998; 279:1089-1093.
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Murad MH, Asi N, Alsawas M,
Alahdab F. New evidence pyramid. 2016 Aug; 21(4):125-7
·
El Dib RP. Como praticar a medicina baseada em
evidências. J Vasc Bras 2007; 6(1): 1-4.