Diretrizes embora importantes para orientação de prática médica, podem conter inúmeros conflitos de interesse, pontos de divergência, e, principalmente, seleção de artigos de baixa qualidade metodológica que podem vir a orientar uma conduta médica através de recomendações inadequadas quanto a verdadeiro nível e força da evidência. As diretrizes devem ser criticadas como qualquer artigo científico e a crítica a um artigo( vamos nos ater aos ECRS, porque estes são padrão-ouro em orientação de terapêutica) envolvem alguns passos que inicialmente focam em questões metodológicas que identificam fatores de confusão e diversos viéses que tornam aquele trabalho inverosímel. Percebam que as recomendações de diretrizes dependem muito da qualidade dos artigos, das evidências existentes, como já supracitei. Existem casos de recomendações absurdas que vão contra o conhecimento vigente, destes que aplicamos diariamente na prática clínica, com base em trabalhos clássicos, muito bem delineados. Isto nos atenta para o fato de que nem tudo que é velho é ruim em comparação ao novo que "deveria ser" sempre "bom", e que devemos ter um olhar crítico e cético no momento de analisar a evidência científica.
Esta postagem de hoje tem como alvo discorrer sobre um tópico absurdo da diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia e Sociedade de Climatério que classificou a terapia de reposição hormonal como Classe IIa, nível de evidência B , para prevenção de eventos cardiovasculares.
Timing Hyphotesis
Muitos dos entusiastas da TRH como prevenção de eventos cardiovasculares utilizam do conceito acima para justificar os resultados de estudos que demonstram uma relação de proteção entre TRH e DCV. Este conceito tem associação com o momento de uso de uma terapia, a depender do momento em que você a institui , ela pode ser benéfica ou maléfica, isto parece muito estranho, mas realmente ocorre, temos como exemplo o caso da trombólise química no Iam com supra. Percebam que no caso da TRH, as evidências que demonstram seus supostos benefícios argumentam sobre uma introdução precoce deste tratamento, no período da transição menopáusica ou nos primeiros anos de pós menopausa. Acontece que este conceito não pode ser justificativa para mudança de conduta terapêutica e não podemos aceitar esta explicação causal, por mais plausível que seja, quando a hipótese testada em estudos científicos tem resultados espúrios. Analisem a qualidade desta recente publicação que demonstra haver redução de eventos cardiovasculares, sem aumento da incidência de qualquer tipo de câncer ou câncer de mama no grupo tratado com TRH. Vejam que este estudo é um estudo pequeno, aberto, por isso sujeito a perfomance bias, com baixo poder estatístico, não há cálculo da incidência esperada do desfecho, então não podemos saber se o n utilizado foi adequado. Qualquer diferença encontrada em um estudo com poder estatístico duvidoso, faz com que seus resultados tenham veracidade questionável. O acaso parece ser uma boa explicação para os resultados encontrados neste trabalho, portanto, me espanta a utilização deste estudo como argumento para uso de TRH em prevenção primária cardiovascular. Acho que isto é reservado a um exercício de retórica daqueles que vemos em congresso, onde não podemos analisar a qualidade da evidência.
A ordem das evidências.
A diretriz da SBC argumenta ter feito análise de 574 estudos, dos quais foram retirados 114 para profunda análise e composição da base de conhecimentos. Neste aspecto, percebam que você não consegue identificar as referências desses estudos mais precisamente. Mas, de maneira geral, as evidências a respeito da TRH e doenças cardiovasculares, podem ser divididas em estudos observacionais, ECRS com desfechos substitutos e ECRS com desfechos primordiais.
I - Estudos de coorte
Analisando profundamente os estudos observacionais percebam que muitos deles são semelhantes em apontar redução da incidência de DCV entre usuárias de estrogênio. Um dos mais importantes, inclusive citado em apostilas do Med curso é a coorte com enfermeiras americanas - The Nurses Healthy Study - que acompanhou cerca de 59.000 mulheres por longo período e observou uma redução de 40% na incidência de DAC. Acontece que embora esta associação tenha sido demonstrada, estudos observacionais como abordamos aqui são (1) geradores de hipóteses, (2) embora controlando adequadamente muitos fatores de confusão, sempre há um fator residual neste tipo de delineamento,(3) demonstram apenas associações não podendo demonstrar causalidade. Há também a possibilidade, nestes estudos observacionais e abertos - da ocorrência do efeito Hawthorne. O fato do indivíduo saber do benefício da terapia pode fazer com que estes se adequem a melhores hábitos de vida, ou seja, mudanças de comportamento que podem trazer algum benefício clínico.
II - Ensaios clínicos randomizados com desfechos substitutos.
Temos como exemplo, o maior deles o PEPI - este estudo foi desenvolvido da seguinte forma: Alocou(houve randomização) 875 mulheres para receber placebo ou diversos associações de hormônios. No grupo que recebeu o tratamento, houve diminuição de HDL e redução de fibrinogênio.
Desfechos substitutos x Desfechos Relevantes
Para fins didáticos, é sempre importante estabelecer que os desfechos substitutos compõe variavéis fisiológicas e laboratoriais ( fibrinogênio e HDL, respectivamente) em estudos que não tem poder estatístico adequado para mensurar desfechos clínicos. Estes estudos são geradores de hipóteses e não alteradores de conduta.
Desfechos relevantes ou desfechos clínicos compõe aqueles que são realmente importantes para o paciente, eles avaliam o verdadeiro impacto da doença na vida do doente. Como exemplo temos: morte ( o principal desfecho clínico), avc, iam, internação em icc, fratura óssea na osteoporose, qualidade de vida na asma. Estes desfechos quando analisados por um estudo de terapia fazem com que este estudo a depender dos resultados possa alterar uma conduta.
III - Ensaios Clínicos Randomizados com desfechos relevantes
Chegamos ao momento de separar o joio de trigo. Aqui teremos a resposta, onde refutaremos a hipótese de que a TRH possa ser indicada como prevenção para eventos CV, como indicado na diretriz.
O estudos HERS surpreendemente demonstrou haver um aumento do risco de 52% para DAC em mulheres em uso de TRH, risco que se reduziria com o passar do tempo, mas continuaria alto, de acordo com que fora observado no segmento. Além disso, houve aumento de eventos tromboembólicos nestas mulheres. Vejam, como este estudo de boa qualidade, refuta os achados de pesquisas observacionais e de ECRS mal delineados.
Por fim, temos o clássico WHI, o maior estudo realizado para prevenção primária de DAC em mulheres em uso de TRH na pós-menopausa. Este clássico estudo que randomizou 16.000 mulheres demonstrou um aumento da incidência de doenças cardiovasculares, câncer de mama, avc e eventos tromboembólicos e é baseado nisto que não se deve prescrever TRH em mulheres pós-menopausa com o objetivo de prevenir eventos cardiovasculares.
Ademais, ao contrário da diretriz, diversas outras sociedades condenam e contra-indicam o uso desta terapia com esse objetivo.
Analisem a qualidade das evidências e comparem com os achados do WHI e vejam quais são mais consistentes. Vejam que neste estudo (WHI) não houve interação entre idade e tratamento, demonstrando que seus efeitos não foram diferentes nos mais jovens, jogando por terra o conceito de janela de oportunidade abordada na diretriz.
Analisem a qualidade das evidências e comparem com os achados do WHI e vejam quais são mais consistentes. Vejam que neste estudo (WHI) não houve interação entre idade e tratamento, demonstrando que seus efeitos não foram diferentes nos mais jovens, jogando por terra o conceito de janela de oportunidade abordada na diretriz.
A diretriz diz ainda que o julgamento clínico não pode levar em conta somente os resultados de ensaios clínicos randomizados com placebo, e sim, um conjunto de variáveis clínicas e fatores de risco do paciente. Um argumento "florido" para justificar condutas não embasadas em evidências. Na ausência de evidências, deveríamos ficar sempre com a hipótese nula. O peso da evidência deve justificar nossas condutas em decisão multifatorial.
Por fim, demonstra-se que diretrizes devem ser questionadas à luz do peso das evidências, e demonstra-se que até prove-se o contrário ,TRH como vemos na prática clínica, sendo na maioria das vezes praticada de forma correta, não deve ser prescrita com o intuito de prevenção primária de DAC em mulheres pós-menopausa. Mas, fica a pergunta. Quais os impactos de uma péssima indicação feita por uma diretriz?