Realizaremos uma série de postagens relacionadas aos princípios da Medicina Baseada em Evidências, como parte deste primeiro capítulo, faremos uma abordagem sobre os testes de hipóteses e o princípio da hipótese nula na prática clínica.
Antes de nos aprofundarmos um pouco mais sobre o princípio da hipótese nula, acho que vale uma abordagem rápida sobre o conceito de hipótese. Segundo a enciclopédia virtual Wikipédia, o conceito de hipótese está relacionado a uma suposição, especulação, uma formulação provisória sobre algo que é observado e que temos intenção posterior através de experimentos de demonstrar. Portanto, o método hipotético-dedutivo é fundamental para a busca de evidências.
Os testes de hipóteses (são vários, mas não é função deste blog discorrer sobre eles no momento) tem íntima relação com o pensamento probabilístico, isto porque esses testes consideram que determinados resultados estão sobre efeito do acaso (erros aleatórios) ou fatores causais que fazem com que os dados observados apresentem variações.
Se há relação com probabilidade, há incerteza, se há incerteza as avaliações sobre determinados resultados provenientes de estudos que determinam condutas médicas podem incorrer em erros, como o de rejeitar uma hipótese que não deveria ser rejeitada (erro do tipo II) ou não rejeitar uma hipótese que deveria ser rejeitada (erro do tipo I).
Testar uma hipótese significa utilizar basicamente duas possibilidades – A hipótese nula (H0) para designar a hipótese pelo qual o estudo foi concebido e a hipótese alternativa (H1) quando rejeitamos a nulidade dos efeitos através de evidências contrárias. Ao adotarmos uma conduta médica podemos ficar com a hipótese nula ou com a hipótese alternativa, a despeito de algum tipo de tratamento.
Nosso objetivo aqui é discorrer sobre a hipótese nula, então vamos a alguns pontos. A hipótese nula é sempre a primeira hipótese que é testada – Isto quer dizer que um fenômeno não existe até que seja demonstrado. Se refletirmos um pouco mais sobre isso, o princípio da Hipótese Nula nos diz – “Seja sempre cético em relação aos resultados apresentados por um artigo científico, isso vai te deixar mais atento para identificar possíveis benefícios, mas também mais cauteloso, e se sua análise incorrer em moderada incerteza não adote a conduta. No cotidiano funciona assim. Porque não acreditamos em extraterrestres? Porque simplesmente não foram demonstradas evidências suficientes da sua existência, caso contrário, estaríamos com a hipótese alternativa( ETS existem). Papai Noel como concebido pela tradição cristã existe? Até agora não, pois até hoje ninguém demonstrou sua real existência. Acreditamos na efetividade e eficácia do xarope da nossa vovó quase médica? Na verdade não, porque ninguém demonstrou a eficácia desse tratamento. Embora no cotidiano este conceito aparente ser tão intuitivo e facilmente compreendido, percebemos que ele é frequentemente violado em determinadas condutas médicas, principalmente por médicos que queiram apresentar ser resolutivos, o chamado Viés do médico ativo, que gera transtornos e procedimentos desnecessários.Muitas vezes o médico deveria ficar com a hipótese nula, mas acaba adotando tratamentos que provocam mais prejuízos que benefícios com condutas arbitrárias.
A hipótese Nula e a Avaliação da Evidência.
Ao lermos um artigo pela primeira vez sempre aconselho a olhar os objetivos e conclusão no resumo, assim saberemos se o resultado é positivo ou negativo – Ou seja, refutou ou não a hipótese nula, a partir disso conseguiremos fazer uma avaliação mais crítica dos achados, passando sempre por Veracidade, Impacto e Aplicabilidade( vou ensinar como fazer isto depois). Mas, voltando à hipótese nula, temos aqui alguns exemplos didáticos.
I – Se o estudo quer verificar associação entre amamentação e surgimento de determinadas patologias como asma, DRGE e alergias. A (Ho) seria a não associação entre aumento da incidência de asma, DRGE e alergia na criança e aleitamento materno exclusivo. Obviamente isto não é verdadeiro, o aleitamento materno é demonstrado nos estudos observacionais (nossa melhor evidência para este caso, http://archive.ahrq.gov/clinic/tp/brfouttp.htm) como redutor na incidência destes desfechos, portanto ao indicar o aleitamento estou ficando com a hipótese alternativa.
II – Se estou analisando um ensaio clínico randomizado que pretende comparar o efeito da Transfusão com base em altos níveis de Hemoglobina VS baixos niveis de Hemoglobina, ou seja, transfusão liberal x restritiva para desfecho mortalidade em 30 dias no Choque Séptico. A (H0) seria que não a diferença para redução de mortalidade entre um procedimento e outro. Os tratamentos são iguais. Veja o resultado deste artigo recente publicado no New England. Nesse artigo, ele refutou a hipótese alternativa, ficando com a hipótese nula, de que não há diferença entre os dois procedimentos.
A hipótese nula e a aplicabilidade clínica.
O princípio da hipótese nula cobre uma séria de condutas médicas. Podemos aqui enunciar alguns exemplos.
Na década de 90, inúmeros estudos propuseram a indicação de TRH em mulheres pós-menopausa ( há uma plausibilidade biológica para isso) com objetivo de prevenir eventos cardiovasculares. Estes estudos demonstraram que o uso de TRH nessas mulheres diminuiria a ocorrência de eventos cardiovasculares, tromboembolismo e até câncer de mama.Acontece que todos estes estudos eram mal delineados, cheios de viéses( na maioria estudos observacionais) , baixo poder estatístico (no casos dos ECRS) e uso de desfechos intermediários e neste caso, com uma boa análise crítica deveríamos ter ficado com a hipótese nula não adotando a conduta. Houve uma recomendação da SBC com indicação II a para TRH em mulheres pós-menopausa com objetivo de prevenir eventos cardiovasculares. Quantas mulheres, sofreram um evento coronariano devido a essa indicação? Vale este questionamento.Por fim, mais tarde, resolvendo a questão,um grande ensaio clínico foi publicado WHI demonstrando que está terapia aumenta o risco cardiovascular e não deve ser indicada para PREVENÇÃO DE EVENTOS CORONARIANOS. ( Não tenho nada contra TRH).
A hipertrigliceridemia e a hipótese Nula.
A associação entre hipertrigliceridemia e eventos cardiovasculares não está ainda bem definida, os estudos que foram realizados até o momento são contraditórios. O grau de evidência desta associação é nível C – isto indica que está conduta deve ser ponderada. Mas podemos sim ficar com a hipótese nula no tratamento da hipertrigliceridemia isolada no que se refere a desfechos cardiovasculares. Se os níveis de Triglicerídeos não estão suficientemente elevados para causar pancreatite aguda, posso lançar mão de não tratar o paciente com fibratos, indicando apenas MEV, pois não existem evidências para isso enquanto a benefícios cardiovasculares. A V diretriz de dislipidemia demonstra a inconsistência dos resultados, onde pode não haver reversibilidade de dose-resposta para o desfecho mortalidade cardiovascular - um critério de causualidade importante - isto quer dizer que ao tratar esses pacientes com fibratos não há redução de mortalidade, não sendo estabelecido um critério importante para associação causal.
O caso dos Antitussígenos e da vitamina C
Os antitussígenos em crianças menores de 2 anos ( Se lembra Gisele Martins Wiggers da Aula da Kellen), bem como, o uso de vitamina C para prevenir gripes e resfriados ou Câncer também são exemplos,respectivamente, no primeiro não existem estudos suficientes nessa faixa-etária e seria arriscado extrapolar demais(princípio da complacência), tornando a evidência muito indireta( quanto mais distante das características do nosso paciente mais indireta fica a evidência, é só lembrar dos estudos com ICC que são feitos com pacientes em faixa de idade de até 65 anos) e quanto mais indireta nossa evidência maior as nossas incertezas. No segundo, os estudos realizados até o momento tem mostrado a ineficácia desses métodos, demonstrando que não existe qualquer associação entre uso de vitamina C e prevenção desses eventos - Mais um exemplo de que plausibilidade biológica( Quer enganar alguém? Ensine o mecanismo fisiopatológico, sem testá-lo ) serve apenas para gerar Devices, Hipóteses. Na verdade, são vários os exemplos presentes na prática clínica. Fico com uma última questão. Alguém acredita no efeito de xaropes no tratamento de tosse e resfriado? Se sim, estímulo a procurar as evidências e buscar as respostas, depois me contem o que acharam. Ficariam com a hipótese Nula?
Espero que esta postagem tenha sido importante para elucidar mais este conceito, no próximo capítulo falaremos sobre o princípio da plausibilidade extrema ou o paradigma do para-queda na tomada de decisão, o oposto do princípio da hipótese nula quando nossas condutas são embasadas a partir de plausibilidade e sem a necessária demonstração experimental.