terça-feira, 24 de novembro de 2015

SPRINT TRIAL e HAS , um novo paradigma?




A hipertensão arterial sistêmica, sem dúvida nenhuma é um dos mais prevalentes e importantes fatores de risco para a ocorrência de doenças cardiovasculares, em especial, o acidente vascular cerebral e as doenças isquêmicas do coração. Segundo dados mais recentes, cerca de um bilhão de pessoas no mundo inteiro são hipertensas. Talvez, não exista nenhuma relação na medicina tão matemática quanto o aumento dos níveis pressóricos e sua associação com o aumento do risco de eventos cardiovasculares. Meta-análise de 61 estudos observacionais realizada por Lewington S e seus colaboradores tem demonstrado um aumento do risco de eventos cardiovasculares para um incremento nos níveis pressóricos acima de 115/75 mm/Hg,  o que justificaria a pergunta do mais recente estudo publicado no New England Journal of Medicine , no que se refere as metas pressóricas a serem alcançadas em indivíduos de alto risco cardiovascular sem DM ou AVC prévio, com o objetivo de diminuir nesse grupo, a incidência de desfechos duros - o SPRINT - TRIAL.

 O SPRINT - TRIAL  foi concebido  de acordo com o paradigma do "More is More", ou seja, a partir da seguinte questão: Será que vale a pena tratar mais agressivamente  pacientes de alto risco sem DM e AVC prévio, tendo como alvo uma pressão sistólica inferior a 120 mm/hg?
O estudo foi positivo e sugeriu que em indivíduos de alto risco cardiovascular com idade superior a 50 anos, sem DM e AVC prévio haveria benefício em tratá-los mais intensivamente, buscando metas pressóricas de até 120/80.

Revisando o estudo temos que seguir a seguinte análise. Validade interna - Relevância -  Aplicabilidade.



Alguns detalhes devem ser mencionados:

O estudo teve um poder estatístico adequado, superior a 80%, evitando erro do tipo II,  o valor amostral englobou cerca de 9361 pacientes, num follow-up total de 3,26 anos.
Os critérios de inclusão incluíram: pacientes acima de 50 anos, com PAS entre 130 e 180, sendo estes de alto risco cardiovascular,
Os pacientes considerados de alto risco foram: Framingham maior que 15% ou idade superior a 75 anos.
Doença cardiovascular manifesta - (equivalente aterosclerótico), com exceção do AVC ou achados subclínicos de DCV.
Taxa de filtração glomerular entre 20 e 60 pela fórmula MDRD, excluindo-se pacientes com rins polícisticos.

Validade Interna


Quanto a validade interna temos que um estudo pode ser positivo ou negativo a depender de viéses e erros aleatórios.


Quanto aos viéses este foi um estudo randomizado, controlado, (o que evita viés de seleção e confusão). Feito  com a intenção de tratar ( o que evita viés de tratamento ) e pequena perda de follow-up.
Contudo, este foi um estudo aberto, sujeito a viéses de aferição, entretanto como os desfechos primários foram duros, me parece que isso não tenha ocorrido.
Nesse aspecto, em análise sistematizada este é um estudo com baixo risco de viéses.

Quanto a possibilidade de que os resultados tenham sido decorrentes do acaso: O estudo demonstrou ser projetado com um adequado poder estatístico para captar a diferença na incidências dos desfechos que fora planejada, ademais, ele anula outras possibilidades de erro aleatório ao fazer a conclusão do estudo com base em desfechos primários duros, evitando o problema das comparações múltiplas.

Mas, há uma questão: ESTE ESTUDO FOI TRUNCADO. A interrupção precoce pode superestimar a redução do risco relativo destes ensaios clínicos em comparação com os pares não truncados em até 39%, entretanto, quando o estudo é truncado com mais de 500 desfechos, o truncamento não implica em superestimativa do efeito da intervenção.Quando o estudo foi interrompido, já haviam ocorrido 562 desfechos, 243 no grupo tratamento (1,65 % ao ano) e 319 (2,19% ao ano) no grupo padrão.

Portanto, podemos concluir que o SPRINT - TRIAL, tem validade interna, com baixo risco de viéses e erros aleatórios. Seus resultados são válidos.

Relevância 


Devemos verificar a magnitude do ponto de vista quantitativo do tratamento intensivo e o tipo de desfecho.


O desfecho primário foi um combinado IAM, Angina Instável, ICC descompensada ou morte por causa cardiovascular.
O desfecho secundário foi composto por todos estes desfechos supracitados, mais mortalidade geral.
Todos estes desfechos são relevantes e foram definidos adequadamente.

Os resultados demonstraram os seguintes NNTs:  61 para o desfecho primário, em que o IAM foi o desfecho que mais contribuiu para estes resultados. Foram 243(5,2%) desfechos no grupo tratamento intensivo, sendo que 97 (2,1%) destes casos foram resultantes de IAM-não fatal.
NNT de 90 para mortalidade por qualquer causa - um desfecho secundário.
NNT  de 172 para mortalidade por causas cardiovasculares, isoladamente outro desfecho secundário.

Analisando, a conclusão, percebemos que a incidência de eventos adversos aumentou no grupo tratamento intensivo, o que pode ser calculado na forma de NNH, isto é importante porque vai influenciar na aplicabilidade do estudo.

Síncope NNH de 91; Hipotensão NNH de 72; IRA com necessidade de diálise NNH de 56 e Distúrbios eletrolíticos NNH de 100.

Quanto a magnitude do benefício, temos que seria necessário tratar 61 pacientes para salvar 1, no que se refere ao desfecho primário. Um NNT de pequena magnitude para eventos não-fatais, conquanto ainda é superior aos riscos.

Aplicabilidade

Acho que para este estudo, o raciocínio da aplicabilidade envolve a seguinte questão:
I - Em quem a terapia será aplicada?

Analisando as características dos pacientes alocados para o estudo, pode-se perceber que cerca de 30% tinham idade superior a 75 anos ( o que considero uma das virtudes desta pesquisa, haja vista, que a partir dessa idade as evidências vão ficando mais indiretas, pois essa faixa-etária é mais sub-representada nos estudos clínicos), 30% eram negros, 36% eram mulheres, 28% tinham doença renal crônica, 20% tinham doença cardiovascular conhecida. A partir dos critérios adotados no estudo, estes pacientes foram considerados de alto risco cardiovascular. 
Portanto, é nesse tipo de paciente, que o tratamento agressivo ( meta abaixo de 120) poderá ser aplicado como evidência direta. 

Em postagem prévia mencionamos que um dos grandes objetivos de realizarmos um ensaio clínico é de extrapolarmos seus resultados para populações diferentes daquela testada na amostra do estudo, o que chamamos de Princípio da Complacência. Para isso, diante de um paciente diferente daquele testado no estudo deve-se fazer a seguinte pergunta: "Este paciente é tão diferente daqueles do estudo, de forma que os resultados não se apliquem a ele, ou de maneira que os benefícios se perderão ?"

Geralmente, para testar um conceito os grandes ensaios clínicos, selecionam amostras de alto risco, onde é mais fácil demonstrar um benefício estatístico, o que aconteceu no SPRINT - TRIAL. Se nessas populações de alto risco , o benefício não ocorrer, é muito provável que também não ocorra numa população de baixo risco.
Por isso, durante o raciocínio clínico ao aplicarmos o princípio da complacência devemos ter em mente que ao extrapolarmos os resultados para populações de baixo risco, os benefícios tendem a ser menores.
Julgo que nesse tipo de paciente - um paciente de baixo risco cardiovascular e com algumas outras nuances, como ausência de outros fatores de risco, o benefício irá se diluir demais e a aplicabilidade desse tipo de tratamento não parece adequada.

 Paciente idoso e a história da Polifarmácia

Sabe-se que pacientes idosos, pelo número maior de comorbidades que apresentam, tendem a usar medicações em número mais excessivo em comparação aos seus pares mais jovens.
Hubbard RE. Polypharmacy among inpatients age 70 years or onlder in Australia. MJA 202(7).20 april 2015. DOI: 10.5694/mja 13.00172, demonstra que a cada comorbidade que o idoso apresenta, o risco de enquadrar-se na categoria de polifármaco aumenta em 27%.
Por outro lado, nesse sistema muito mais sensível que é o dos idosos, o risco de interações e de eventos adversos pode ser maior. O estudo mostrou um maior risco de hipotensão, síncopes e queda da taxa filtração glomerular superior em até 30%  no grupo de tratamento mais intensivo.
E, nesse sentido, evidenciamos, que o controle intensivo se deu à custa da adição de mais medicação, a média no grupo tratamento intensivo foi de 2,8 fármacos, o que aumenta a probabilidade de mais eventos adversos. Portanto, há de se tomar cuidado e individualizar a conduta.

Aderência ao tratamento e uso de mais medicamentos

Em estudo já um pouco antigo,  mas de grande utilidade, sobre as causas de baixa adesão ao tratamento para HAS, Mion JR D e Pierin AMG, apontam que 67% dos indivíduos referiram baixa adesão por terem de tomar várias medicações ao dia. Não é novidade que o número de medicamentos pode reduzir  a adesão ao tratamento . Nesse premissa, será que  no paciente com baixa adesão ,este tratamento seria uma alternativa?  Talvez não.

Por fim, acredito que o SPRINT - TRIAL nos oferece uma evidência de qualidade a favor de um tratamento mais intenso nesse perfil de pacientes (Sem DM  e AVC prévio).
Para pacientes diabéticos o princípio do "Less is More" ainda deve prevalecer, como demonstrado pelo ACCORD.
Mas o grande aspecto a ponderar na minha análise é que este novo trial nos oferece a lição da necessidade cada vez maior de individualizarmos nossas condutas de acordo com o conceito que é demonstrado nos ensaios clínicos.
E por que individualizar? Muitos pacientes elegíveis para uma conduta mais agressiva poderão passar a um controle menos intenso, dependendo de sua tolerabilidade ao incremento de novas medicações para atingir a meta proposta e nesse aspecto privaríamos nosso paciente de menos riscos e dos benefícios possíveis com o tratamento anti-hipertensivo.

































domingo, 4 de outubro de 2015

A aplicabilidade das Evidências - Validade Externa




Finalizando a série sobre análise crítica de evidências científicas, este post tem como objetivo abordar sobre onde, como e em quem a terapia testada será aplicada. A aplicabilidade de uma evidência está relacionada ao conceito de validade externa - onde busca-se a generalização dos resultados de uma terapia testada para uma população de interesse. 

De maneira bastante diferenciada, na aplicabilidade somos mais permissivos, momento no qual utilizamos um dos princípios mais importantes da Medicina Baseada em Evidências -  "O princípio da complacência".  

Ao julgarmos a aplicabilidade de uma terapia, devemos ter em mente dois conceitos:
A  aplicabilidade requer uma análise menos objetiva do que a veracidade e relevância.
Na análise de veracidade somos mais sistemáticos e rigorosos.  E, por que somos mais rigorosos durante a avaliação da validade interna de um estudo?
Essa rigoridade é justificada pelos riscos existentes ao aplicarmos uma terapia que gerou resultados falsos. A veracidade tem intima relação com a hipótese nula, em que a depender da existência de viéses e acaso, um fenômeno é considerado inexistente até que seja demonstrado. Na prática médica, quando há moderada incerteza sobre uma conduta, não devemos aplicá-la , considerando este mesmo princípio. 

Durante a aplicabilidade quando demonstrada a veracidade de uma informação, buscamos extrapolar os resultados daquela intervenção para pacientes que não fizeram parte daquela amostra estudada, pois o potencial de generalizar resultados de um ensaio clínico para o maior número de indivíduos possíveis é o que motiva a realização destes estudos.

De maneira bastante rotineira, tem-se visto diversas críticas em relação ao tipo de população selecionada para determinados ensaio clínicos, principalmente nos aspectos que envolvem questões demográficas e culturais, contudo é na análise de aplicabilidade que até um certo limiar, podemos refutar estes argumentos. I) Grande maioria dos estudos que testaram o efeito de anti-hipertensivos, estatinas, trombolíticos, antibióticos e vacinas, foram feitos em populações bastante diferenciadas da nossa (altamente miscigenada), devido a isto privaríamos nossos pacientes brasileiros do benefício comprovado destas medicações? Há alguma razão para este benefício se perder no nosso paciente? Julgamos que não , portanto fazemos o uso destas medicações nos nossos doentes. II)  Sabe-se que geneticamente temos nossas particularidades, apenas gêmeos idênticos têm material genético 100% igual, mesmo assim há existência de mais semelhanças do que diferenças entre as populações, o que nos permite até numa análise mais filosófica refutar o próprio conceito de raça, e é baseado nisso que estamos autorizados (pelo princípio da complacência) a adotar uma terapia que foi testada, por exemplo,  em europeus - Estatina para prevenção primária - WOSCOPS.


 Como realizar a análise de aplicabilidade?

Primeiramente devemos pensar sobre "em quem será aplicada aquela terapia". Quando estamos de posse de um artigo científico, devemos analisar as características da amostra, que geralmente está presente na Tabela 1. Nessa tabela, encontraremos informações relativa a frequências dos gêneros, a média de idade dos pacientes, comorbidades mais frequentes e etc.  Além disso, é importante ter conhecimento sobre os critérios de inclusão e exclusão do estudo e sabendo disso temos certeza que é nesse tipo de paciente que a terapia funciona como evidência direta.  Como mencionamos, um dos objetivos da realização de um trial é sua capacidade de generalização de resultados para uma população alvo diferente daquela testada no estudo, caminhando em direção a validade externa, quando temos a nossa frente um paciente diferente daquele da amostra estudada devemos fazer o seguinte questionamento: "Este paciente é tão diferente daqueles do estudo, de forma que os resultados não se apliquem a ele, ou de maneira que os benefícios se perderão ?"


Por exemplo, os clássicos estudos em ICC foram constituídos por pacientes com idade de até 75 anos, entretanto haveria algum motivo para não realizarmos o tratamento dessa condição em indivíduos com 76, 77, 85 anos? Não, por isso tratamos esses pacientes, contudo com o avançar da idade a evidência vai ficando mais indireta e os benefícios podem se perder, o que nos gera incertezas em relação ao tratamento dessa condição com determinadas medicações em indivíduos com idade muita avançada.

A indicação de terapia a base de corticóides inalatórios na DPOC depende da estratificação do risco do paciente através dos critérios de GOLD (VEF1 menor ou igual a 50%) ou da presença de exacerbações muito frequentes. Haveria algum motivo para acreditar que o benefício dessa terapia se perderia em um paciente com VEF1 de 52%? Não, por isso a terapia poderia ser indicada nesse tipo de paciente.
Geralmente, para testar um conceito os grandes ensaios clínicos, selecionam amostras de alto risco, onde é mais fácil demonstrar um benefício estatístico. Se,  nessas populações de alto risco , o benefício não ocorrer, é muito provável que também não ocorra numa população de baixo risco.
Por isso, durante o raciocínio clínico ao aplicarmos o princípio da complacência devemos ter em mente que ao extrapolarmos os resultados para populações de baixo risco, os benefícios tendem a ser menores. 

O clássico WOSCOPS , primeiro estudo que constatou o benefício do uso de Pravastatina em homens sem eventos cardiovasculares prévios, demonstrou uma redução de mortalidade cardiovascular às custas de um NNT de baixo impacto , 143. De frente a um paciente em uso de estatinas para prevenção primaria com queixas intensas de mialgia haveria algum motivo para não reduzir a dose(diminuir a intensidade do tratamento), ou suspender a medicação, se a clínica me indicar que a qualidade de vida do paciente está muito prejudicada? Não, pois probabilisticamente, teria de tratar muitos pacientes para salvar um, através de uma terapia que não reduz mortalidade geral. 

Até este momento, falamos de "em quem a terapia será aplicada ", mas é importante pesar aspectos, sobre "como ela será aplicada?" e o "ambiente em que será aplicada?".

A questão de como aplicar a terapia envolve a necessidade de compreender aspectos sociais e econômicos, bem como , o custo efetividade.
Poderíamos utilizar sinvastatina 40 mg em um paciente com indicação de terapia de alta intensidade - atorvastatina 40 mg, mas com poucas condições econômicas de adquirir esta medicação? Julgo que sim, pois  embora a terapia esteja numa moderada intensidade com o uso da sinvastatina, a droga seria adquirida gratuitamente e não privaríamos nosso paciente do benefício do seu efeito antilipidêmico - em contraste evitaríamos o efeito colateral naquele momento devido ao aumento da dosagem da medicação.

É valido também utilizar a droga mais cara e mais benéfica no momento mais agudo da doença e após isso, para uso crônico substituir por  uma medicação "menos eficaz" em comparação a outra droga, mas com bom custo-efetividade, se as condições  econômicas do paciente não permitirem o uso da primeira medicação muito mais cara.

No que refere-se ao ambiente de aplicabilidade da terapia, esta pode ser reservada muito bem para intervenções cirúrgicas ou procedimentos mais invasivos. Prestemos atenção que determinados procedimentos , dependem muito da estrutura do serviço em que foi realizada, da experiência da equipe cirúrgica e das condições dos pacientes que foram estudados, dessa forma, estaremos cientes da capacidade de reprodutibilidade desses resultados.

Vale muito também prestar atenção no nível de Evidência. Evidência C, só deve ser aplicada quando a fisiopatologia se impor. Por exemplo, porque tratar pacientes para Hipertrigliceridemia com uso de fibratos numa abordagem primária, se ainda não foi demonstrada uma relação causal entre esse lipídeo e eventos cardiovasculares? Porém, se os níveis estiverem demasiadamente elevados a despeito das mudanças de estilo de vida e as taxas estiverem acima de 500, pelo risco de pancreatite - plausibilidade biológica, o tratamento se impõe.

 Percebe-se que a análise de aplicabilidade envolve uma cadeia de questionamentos de  "quem, como e onde?" relacionados a dois princípios importantes da MBE - o princípio da hipótese nula e o princípio da complacência que nos auxiliam no julgamento clínico para fornecer o cuidado assistencial mais adequado ao paciente. Devido a isso, está demonstrado que a MBE jamais tomará o lugar do julgamento clínico na individualização de condutas médicas.


















quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Relevância. O cálculo do NNT




Em postagem prévia mencionamos que a crítica quanto a relevância de um artigo científico deve focar no tipo de desfecho e na análise quantitativa quanto a magnitude do benefício que foi comprovado na validade interna.
Esta postagem tem como intuito discorrer sobre impacto do tratamento relativo as medidas de associação, mais precisamente ao NNT ( Número necessário a tratar ou em inglês Number Needed to Treat). 

O NNT é a medida de associação de maior significância clínica, expressa quantos pacientes necessitam ser tratados através daquela intervenção em um dado período de tempo para se prevenir certo desfecho (Ex: Infarto Agudo do Miocárdio). É bem conceituado que quanto menor o NNT, maior o benefício daquela intervenção. Em termos ideais o melhor NNT possível seria = 1, ou seja, que significa que todo paciente tratado se beneficiaria. Um NNT de 37, como no uso de carvedilol para pacientes com ICC, significaria que seria necessário tratar 37 pacientes com carvedilol para prevenir um evento adverso ( morte) em pacientes com ICC no decorrer de 8 semanas.
De maneira indireta, o NNT apresenta muita utilidade para os clínicos porque nos da uma ideia do quanto de esforço seria despendido naquele tratamento para salvar um paciente.
Como o NNT não guarda relação com a RRR ( redução do risco relativo que é dependente do efeito intrínseco do tratamento), e  sim com RAR ( redução absoluta do risco  que depende do risco basal daquela população ) quanto maior o risco basal de uma população menor será o NNT e maior será o efeito quantitativo daquela intervenção. Em populações de baixo risco provavelmente teremos uma redução absoluta de risco e NNT de pouco impacto, o que nos deixa duvidosos sobre o benefício daquele tratamento que em termos de efeito quantitativo é baixo.

Temos aqui então duas regras importantes.

1 - O NNT tem relação intima com a RAR ( Redução absoluta de risco)
2 -  O NNT possui uma relação inversamente proporcional ao risco de base daquela população.

O seu princípio pode ser extrapolado para outros estudos que não necessariamente avaliam uso de medicações. O NNT pode ser calculado em estudos de intervenção com procedimentos invasivos(cirúrgicos), vacinações e rastreamento.
A título de exemplo, quando comparamos o uso de Stent Farmacológico x Stent Convencional para prevenir Reestenose = O NNT do Stent Farmacológico é de 16 em relação ao Stent Convencional, ou seja,  devo tratar 16 pacientes com stents farmacológicos para prevenir uma reestenose.
Outro ponto importante é que o NNT não é relatado nos Ensaios Clínicos, sendo necessário calculá-lo, entretanto, isto é possível apenas para variáveis dicotômicas ( Morte = Sim x Não) -- duas possibilidades de desfecho - o NNT não pode ser calculado quando as variáveis são expressas na forma de médias. Ex: ( Média da Pressão arterial com uso de Captopril )

Analisando a figura do  início da postagem podemos retirar mais algumas informações importantes sobre o conceito de NNT que nos auxiliam no julgamento clínico, pois: "Significância clínica vai além da aritmética".

O conceito de NNT está intimamente relacionado ao conceito de probabilidade, isto porque probabilidade refere-se a incerteza e não temos a certeza de quais pacientes ou qual paciente será beneficiado. Pode-se perceber que a figura nos demonstra um NNT de 10 - o que nos permite pensar que 9 desses 10 pacientes não necessitarão de tratamento ou que esses 9 poderão não responder a terapia. 

 Estatina em Prevenção Primária e o NNT


Nos Woscops, foi obtido uma taxa de eventos para o grupo pravastatina  de 5,5% vs uma taxa de eventos para o grupo placebo de 7,9%, com RRR de 31%  P< 0,001  para um desfecho combinado de Iam com morte por DAC. 
No que se refere ao desfecho IAM , o grupo Pravastatina teve uma taxa de eventos de 4,6%, enquanto o grupo placebo teve uma taxa de eventos de 6,5% com RRR de 31% P < 0,001,
O estudo não apresentou significância estatística para Mortalidade por todas as causas, o desfecho em termos de hierarquia mais importante (P = 0,051), todavia o uso de Pravastatina culminou com uma taxa de eventos de 1,6% vs 2,3% no grupo placebo no que refere-se ao desfecho mortalidade por causas cardiovasculares.

Calculando o RAR para o desfecho mortalidade cardiovascular, teríamos as seguinte equação.
RAexpostos = Incidência de eventos nos expostos (intervenção)
RAnexpostos = Incidência de eventos nos não expostos(controle)
RAR = RAnexpostos - RAexpostos
RAR = 2,3-1,6
RAR = 0,7%

Isto significa que para mortalidade por causas cardiovasculares , o uso de pravastatina em 5 anos promoveu uma Redução Absoluta de Risco de 0,7%

NNT = 1/RAR
NNT = 1/0,7
NNT = 143 Ou seja, deveríamos tratar 143 pacientes para evitar uma morte por causa cardiovascular durante 5 anos.
No início da postagem afirmamos que quanto maior NNT menor o impacto da terapia. Para mortalidade, um NNT maior do que 100 representa um pequeno benefício, ao passo que um NNT entre 50-100 um benefício moderado, 25-50 grande e menor que 25 um benefício muito grande.
Para eventos não fatais um NNT maior 100 representaria um benefício muito pequeno, entre 50-100 pequeno, 25-50 moderado e menor que 25 um grande benefício. 

Nesse aspecto, reside a grande crítica ao uso de Estatinas para prevenção primária, NNT muito grande para mortalidade cardiovascular,  o que gera uma certa dúvida sobre a sua eficácia em pacientes sem eventos cardiovasculares estabelecidos. Será que estes não se beneficiariam  de condutas centradas nas mudanças de estilo de vida?
Fica a critério do médico decidir qual desfecho será utilizada para indicar a medicação  durante a conduta clínica, desde que o desfecho analisado seja dicotômico. Percebe-se que o NNT além de uma estimativa numérica, nos fornece um valor filosófico de até onde podem ir nossos esforços.






















domingo, 30 de agosto de 2015

Relevância. O tipo de desfecho




A segunda parte da análise crítica de um artigo deve focar na relevância ou no impacto da terapia que foi testada. Devemos avaliar o tipo de desfecho e a magnitude daquela terapia. A magnitude ( análise quantitativa) pode variar de um pequeno efeito a um grande efeito. Essa etapa da avaliação é muito importante, pois sem ela não é possível ponderar adequadamente o efeito quantitativo daquela intervenção que na análise de veracidade foi comprovada benéfica.

Devemos dividir a avaliação desta etapa em duas:

  • O impacto quanto ao tipo de desfecho.
  • O impacto quanto ao NNT ( número necessário a tratar)
Nessa postagem falaremos sobre a análise do desfecho.

Os desfechos (end points) são medidas quantitativas que estão implícitas quando ocorre a enunciação dos objetivos da pesquisa. Por exemplo, se num hipotético trabalho o desfecho principal é aferir a mortalidade por IAM, determinando o impacto clínico de um novo anticoagulante, o desfecho medido será a mortalidade - Para isso,  será realizado a contabilidade do número de mortes por IAM no grupo intervenção( que recebeu o anticoagulante) vs o número de mortes no grupo placebo. Nesse caso, o desfecho mortalidade é um desfecho duro (hard endpoint) , facilmente mensurado e objetivo, o que evita o viés de aferição. Os desfechos mais frouxos ( soft endpoints)  como a angina de peito estão mais susceptíveis a tendenciosidade do observador. Os desfechos frouxos ou moles, são mais susceptíveis a erros de aferição - um indivíduo pode declarar que o desfecho foi alcançado, ao passo que o outro observador não. Definir claramente quais serão os desfechos e como serão aferidos é algo que diferencia os ensaios clínicos de outros delineamentos de estudo, a solidez da validade interna e relevância depende de como estes desfechos serão aferidos.

- O viés de aferição do desfecho pode estar presente quando o investigador conhece a intervenção designada pelo paciente, o paciente conhece os efeitos da intervenção a que está sendo submetido       (não houve cegamento) e o desfecho é definido de forma pouca objetiva.

Ainda nesse aspecto, enuncia-se que os desfechos podem   ser divididos em desfechos clínicos  e desfechos substitutos.


  • DESFECHOS CLÍNICOS - NORTEARÃO CONDUTAS.

Os desfechos clínicos representam aqueles que realmente tem impacto na vida do paciente. Mortalidade por todas as causas é o desfecho clinico mais importante e seguindo esta ordem temos: AVC e IAM . Existem outros desfechos clínicos que também são bastante significativos, tais como, qualidade de vida na asma, ou taxas de reinternação na ICC crônica devido a descompensação.

A implementação de Ensaios Clínicos com o uso de desfechos duros exige do trabalho um grande tamanho amostral, além de um grande custo, assim pesquisadores e a indústria buscam alternativas, e assim,  destaca-se o uso de desfechos substitutos.

Os desfechos substitutos ou em inglês surrogate endpoints constituem-se de variáveis fisiológicas ou laboratoriais que tentam predizer os efeitos clínicos da terapia. 
O uso de níveis tensionais de pressão arterial = Predizer AVC
Graus de estenose coronariana = mortalidade por DAC
Variações da glicemia = Complicações do DM
Disfunção ventricular de acordo com FE = Morte na ICC
Contagem de células CD4+ = Infecção pelo HIV
Osteoporose = Doenças Ósseas

O uso desfechos substitutos permite que o trabalho tenha um seguimento mais curto, tamanho amostral menor e redução de  custos. Ele é ideal para os ECR de fase I e fase II quando visa-se a segurança de uma intervenção, mas é inadequado quando  trata-se da tomada de conduta que influenciará na vida de muitos pacientes. Isso porque aquelas variavéis fisiológicas não garantem redução de desfechos duros.

A título de exemplo:

 O estudo ALLHAT foi desenhado para comparar quatro anti-hipertensivos ( lisinopril, clortalidona, anlodipino e doxasozina)  quanto aos efeitos sobre  um desfecho combinado de iam fatal e não-fatal. Foram randomizados 42 mil pacientes com HAS de alto risco num follow-up de 4 anos. Durante o seguimento, observou-se no grupo que estava fazendo uso de alfa-adrenérgico, um aumento da incidência de AVC e eventos cardiovasculares combinados em relação ao grupo clortalidona. Ademais, houve aumento da incidência de ICC. Esse resultados fizeram com que o braço doxasozina fosse interrompido. Nota-se nesse estudo, que as médias das PAS e PAD no grupo doxasina foram basicamente as mesmas do grupo clortalidona ao final do seguimento. Ou seja, ambos os fármacos foram capazes de controlar a PA - um desfecho substituto, contudo, em um dos dos fármacos (doxasozina) houve aumento de eventos adversos clínicamente importantes. Já imaginou basear nossa conduta num estudo com desfecho substituto? É  como se fosse um tiro no escuro...

2 - O uso de flacanimida , morizina ou placebo no pós- infarto. Estes antiarrítmicos no pós-infarto estiveram associados ao aumento de mortalidade. Após um ano de seguimento no estudo CAST I e CAST II, verificou-se que 95% dos pacientes do grupo placebo estavam vivos comparados a 90% do grupo antiarrítmico. Estes estudos chamaram atenção para o efeito arrítmico dessas medicações da classe I de Vaughan Williams, confirmaram a máxima da medicina baseada em evidência de que Plausibilidade Biológica não garante eficácia e efetividade terapêutica, além  de demostrarem claramente que o controle das ESV( desfecho substituto) no pós-infarto não reduz mortalidade, pelo contrário aumenta.



Agora, tomado posse desses conhecimentos partindo para análise do WOSCOPS. O que evidenciamos? É simples...

O desfecho primário foi um composto por Infarto não-fatal e morte por DAC, ou seja, um desfecho duro. Além disso não há evidência que o desfecho tenha sido definido de maneira incorreta, o que consta no tópico "Identification and Classification of Endpoints". Há de se tomar cuidado com a definição de IAM que alguns momentos toma a forma de um desfecho substituto, quando apenas a elevação dos biomarcadores de necrose miocárdica são levadas em conta. Isto não ocorreu no estudo supracitado.  Ao final do seguimento observou-se uma redução de 248 eventos coronarianos no grupo placebo vs 174 no grupo que usou pravastatina com redução de risco relativo de 31% a um IC de 95%, 17 vs 43%, p<0,001.







Referências: Major cardiovascular events in hypertensive patients randomized to doxasozine and chlortalidone: the antihypertensive and lipid-lowering treatment to prevent heart attack trial (ALLHAT). ALLHAT Colaborative research group. JAMA 2000, 2083: 1967 - 75.


Cardiac Arrhytmia Supression Trial. Preliminary report: efect of ecainide and flecainide on mortality in a randomized trial of arrhytmia supression after myocardial infarctation. N Engl J Med 1989, 321: 406-12.






sábado, 8 de agosto de 2015

A Veracidade. Parte II

Retomando a série enquanto a análise crítica de evidências, daremos prosseguimento com a análise da veracidade. Lembremos que o grande objetivo da ciência é diferenciar causa de acaso, portanto, inicialmente devemos ficar atento para ocorrência de erros sistemáticos e aleatórios que podem invalidar os resultados de um estudo.

A análise de um artigo inicia pela validade interna, pois como mencionado previamente, não há sentido em adotar uma conduta que pode ser falsa.

"Método é tudo" - (Erros sistemáticos e Erros aleatórios)


A primeira pergunta que deve ser feita é: Existe efeito de confusão influenciando nos resultados do estudo?

O delineamento adotado pelo estudo é muito importante para responder essa questão, portanto, é imprescindível que se faça a diferenciação entre um Ensaio Clinico Randomizado e um Estudo Observacional. Estudos observacionais são concebidos através de amostras de grupos pré-definidos e devido a este aspecto estão susceptíveis a um alto risco de erros sistemáticos, entre eles, o viés de confusão. Ademais, demonstram apenas associações e não causalidade. O que torna um Ensaio Clínico a ferramenta mais poderosa e ideal para o desenvolvimento de condutas terapêuticas e  sua capacidade de alocar de maneira aleatória os grupos testados - A randomização(sorteio) faz com que os grupos testados fiquem  homogêneos, minimizando o efeito de confusão nas relação de causa-efeito.
No que se refere ao estudo WOSCOPS retirando este fragmento de texto em Métodos  "randomly assigned in a double-blind fashion", pode-se perceber que como esperado, trata-se um de ensaio clínico randomizado, o que garante o controle do viés de confusão e seleção.

Veja parte da Tabela 1. Características gerais da amostra. Grupos são homogêneos


A segunda pergunta é: Foi demonstrada significância estatística? 

É muito importante saber que a significância estatística é diferente de significância clínica (NNT), contudo, a significância estatística torna-se importante para demonstrar a influência do acaso (azar) sobre os resultados apresentados por um determinado estudo. Todo e qualquer estudo deve ser realizado através de uma amostragem - a amostra representa nada mais que um grupo de pacientes(pessoas) que possuem características semelhantes a população-alvo da pesquisa. Se vamos avaliar a eficácia de um anti-hipertensivo para o tratamento de Hipertensão não iremos testá-lo em todos os pacientes com hipertensão do mundo( isso é impossível), mas sim em uma pequena parte desses pacientes. Quando trabalhamos com amostras devemos estar atentos enquanto ao papel do acaso. É devido a isto que os estatísticos desenvolveram o valor de P. O valor de P de maneira mais simplista estima a probabilidade daquele resultado ter sido decorrente do acaso. Não podemos eliminar totalmente a influência do acaso, apenas minimizá-la, por isso toleramos um valor de P de no máximo 5%. Vejamos o seguinte exemplo: Se hipoteticamente for verificado que a intervenção através da droga X no tratamento de Câncer de Pulmão aumenta a sobrevida em 30% x Placebo 15%, posso sugerir que a droga aumenta sobrevida. Entretanto, se não for apresentado significância estatística este resultado pode ter sido "falsamente positivo". A exigência de significância estatística evita o erro do tipo I -  rejeitando a hipótese nula quando ela é verdadeira.

Em relação ao WOSCOPS - pontuamos a intervenção ------- desfecho.
Verificamos que a pravastatina 40 mg foi eficaz em reduzir um combinado de Iam não-fatal e morte por DAC, demonstrando uma redução de risco relativo de 31% a um Intervalos de Confiança de 95% para um valor de P < 0,001 - Influência mínima do acaso. Contudo, isso ainda não é suficiente para garantir a validade destes achados - Esbarraremos ou não no problema das comparações múltiplas?

Terceira pergunta. A conclusão foi feita com base em desfechos primários ou secundários?
Quando analisamos um artigo devemos observar nos métodos quais os desfechos analisados - Os desfechos podem ser pontuados em desfechos primários ou secundários. A conclusão de um artigo para este ser considerado válido tem que ser baseado no desfecho primário para qual seu desenho foi concebido, isto porque geralmente os desfechos secundários são muitos, fazendo com que o problema das comparações múltiplas façam com que algum daqueles resultados possa ser proveniente do acaso.
Assim, resumidamente temos que:
Desfechos Primários quando desfechos Clínicos (hard endpoints) - são norteadores de conduta.
Desfechos Secundários -  são apenas geradores de hipóteses - devem ser testados por estudos posteriores.

"Briefly, the primary end point of the study was the occurrence of nonfatal myocardial infarction or death from coronary heart disease as a first event; these two categories were combined". - No presente estudo analisado verifica-se que o desfecho primário foi um combinado de Iam não-fatal mais morte por DAC, e que a conclusão desse artigo de acordo com nota tomada em postagem prévia foi totalmente baseada nesse aspecto validando ainda mais suas informações para norteamento de conduta, pois afastamos definitivamente a probabilidade da ocorrência do acaso.

A quarta pergunta é: Há viés de aferição?
Agora, devemos voltar a nos preocupar com a ocorrência de outros tipos de viéses, dentre eles, o viés de aferição. O viés de aferição é decorrente da mensuração inadequada das variáveis em estudo. Pode ser muito comum estudos observacionais que envolvem variáveis dicotômicas de exposição e doença em que os critérios para definir o que é ou não a exposição/doença podem não estar bem definidos, acarretando em erros de mensuração.  
Nos Ensaios Clínicos devemos nos preocupar com algumas coisas: O cegamento duplo de pesquisador e paciente, a mensuração de desfechos duros - mais objetivos - e que não são susceptíveis a tendenciosidade do observador no momento de mensuração e o controle por placebo. O placebo tem uma importante função de cegar o médico no momento de interpretar os desfechos.
Nesta postagem realizamos uma abordagem completa mais detalhada em relação ao viés de aferição.
Em relação, ao nosso estudo em análise , este foi um estudo duplo-cego baseado em desfechos duros e controlado por placebo que evita viés de aferição e desempenho.

A próxima pergunta seria: O estudo foi conduzido com a intenção de tratar?
O objetivo de um Ensaio Clínico Randomizado que testa uma determinada terapia é simular a prática médica real. Quando alocamos pacientes em estudo randomizado , temos o grupo intervenção e temos o grupo controle. Acontece que nem todos os pacientes que foram alocados para o grupo intervenção completarão o tratamento e muitos do grupo controle poderão tomar a droga. Isso cham-se cross-over e em todo ensaio clínico randomizado, toleramos um certo nível de cross-over(30%). Isso é tolerado porque a prática médica real acontece assim. Muitos dos pacientes com Hipertensão por exemplo, não são aderentes à droga, nem se quer tomam as medicações. Muitos dos pacientes que tomam antibióticos nem se quer completam o tratamento de acordo com o tempo que é prescrito. A intenção de tratar é baseada na premissa de simular o ato da prescrição médica e nesse aspecto a eficácia de uma determinada medicação é baseada na aceitação  do paciente ao medicamento. Isto não pode ser excluído do estudo. A análise primária com a intenção de tratar deve garantir que o paciente que foi alocado para o grupo droga será sempre droga independente de tê-la usado ou não e o placebo será sempre placebo.

WOSCOPS  foi conduzido com a intenção de tratar o que anula a possibilidade deste viés.

Última pergunta - Houve truncamento?
WOSCOPS não foi um estudo truncado o que confere uma alta validade para seus resultados. O truncamento se refere ao ato de truncar - cortar - interromper precocemente um estudo quando seus resultados são considerados de grande magnitude. Na verdade, sabemos que o truncamento superestima os resultados de um estudo, tornando sua veracidade questionável. Não há motivos para truncar uma pesquisa, a menos que o tratamento esteja fazendo mal ao paciente. 

Em conclusão, sabemos que o WOSCOPS é um estudo com baixo risco de viéses e verdadeiro. Foi um estudo randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, com intenção de tratar, sem truncamento e com poder estatístico adequado superior a 80% para demonstrar a diferença esperada na incidência dos desfechos entre os grupos.

Resumindo - 
Randomização -  Evita efeito de confusão
Duplo-Cego controlado por placebo - Evita viés de aferição e desempenho
Intenção de tratar -  Evita viés de tratamento
Não truncado - Não superestima os resultados.
A conclusão com base em desfechos primários duros com significância estatística minimiza o acaso, evitando erro do tipo I, além de nortear conduta.
O poder estatístico de mais de 80%  - Evita erro do tipo II.











quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Série de Dislipidemias(WOSCOPS) - Parte I

Recentemente fora publicado no New England Journal of Medicine, o primeiro trabalho (IMPROVE-IT) a testar adequadamente a associação entre estatina e ezetimiba que utilizou desfechos relevantes (hard endpoints). Este trabalho que foi amplamente discutido em postagem prévia nos trouxe algumas lições, entre elas, ter solidificado a necessidade da realização da análise crítica de evidências, isto porque, o trabalho foi publicado após a última diretriz da AHA para dislipidemias, que trouxe algumas mudanças de paradigmas: a queda das metas terapêuticas do LDL-C no tratamento das dislipidemias que implicaram também da não necessidade da associação com outros medicações não estatinas (até aquele momento cientificamente inadequadas, como as ezetimibas).

Baseado nestas implicações, vamos iniciar uma série de treinamento de análise críticas em terapêutica de Ensaios Clínicos Randomizados discorrendo sobre  estudos clássicos de dislipidemias. Nosso objetivo aqui, além de maturar nossa capacidade científica, é entender o porque das últimas recomendações da última diretriz e discutir mais sobre as lacunas e questionamentos que ficam quanto ao uso das estatinas.

Falaremos sobre o WOSCOPS, o primeiro estudo a testar o uso de estatina em prevenção primária e que gerou a recomendação na diretriz do tratamento de indivíduos com LDL C maior ou igual a 190.
Antes do início do processo de análise, algumas coisas devem ficar claras.
I) Um artigo científico não deve ser lido da mesma forma como se lê um livro - a leitura deve ser mais atenta, deve-se saber o que procurar.
II) Devemos iniciar a leitura pelo resumo, focando-se inicialmente nos resultados e logo depois na conclusão - isto é importante para realização de uma fixação mental, de maneira que possamos comparar estes achados assim que vamos progredindo na análise.
III) Como já foi aqui exaustivamente falado - o crivo da análise crítica deve passar por três partes - Veracidade, Relevância e Aplicabilidade. Evitar o  "efeito boiada" é importante, ou seja,  sair por ai alardeando resultados e conclusões de artigos científicos sem se focar na validade interna. Como adotar uma conduta, se ela foi proveniente de artigo que possue resultados falsos?
IV) Método é tudo.

WOSCOPS foi um estudo publicado no New England Journal of Medicine em 1995, foi randomizado, duplo-cego. Os critérios de inclusão foram: Homens com LDL maior que 155, sem história prévia de IAM. Homens portadores de angina estável, mas sem internação nos últimos 12 meses poderiam ser randomizados. O trabalho seguiu-se por um follow-up médio de 5 anos. Envolveu cerca de 6000 homens com idade entre 45 e 64 anos, alocados aleatoriamente para receber Pravastatina 40 mg x Placebo.
Desfecho Primário: Combinado de Morte por DAC + IAM.



Quais os resultados: 

O uso da pravastatina reduziu os níveis de LDL-C em 26%, com benefícios claros já durante os primeiros seis meses. No grupo placebo houve 248 eventos coronários definitivos ( IAM não-fatal e Morte por DAC) , enquanto que no grupo intervenção houve 174 eventos, com um redução de risco de 31% - p < 0,001).
Houve também redução da morte por causa cardiovascular - Esta saiu de 2,3 para 1,6% no grupo estatina.
Além da redução de risco de 22% p<0,051 de morte por todas as causas no grupo pravastatina.
Não houve diferença significante na elevação das transaminases nos 2 grupos.
O LDL-C médio foi de 192 mg/dl.

Qual a conclusão?

O tratamento com pravastatina reduziu a incidência de IAM e morte cardiovascular em homens com moderada hipercolesterolemia e sem história prévia de IAM.

Tomando nota destes achados passaremos a análise da veracidade, que será divulgada no próximo post.







domingo, 19 de julho de 2015

Check-list para análise crítica de EC em terapia

Sabemos que os ECS representam o modelo de estudo padrão-ouro para avaliar o benefício de condutas terapêuticas, entretanto, qualquer evidência que ateste o benefício ou não de uma conduta terapêutica deve passar pelo crivo da validade interna, relevância e aplicabilidade(validade externa).
Para realizar análise crítica de evidências científicas não é necessário um expertise em epidemiologia clínica ou medicina baseada em evidências, mas deter de alguns conhecimentos básicos e seguir o seguinte check-list que varia de acordo com o delineamento do estudo.


Validade Interna ou Veracidade:
1 - Há efeito de confusão influenciando nos resultados?
2 - O tratamento foi corretamente realizado no grupo intervenção?
3 - O grupo controle recebeu tratamento adequado que possa atenuar o contraste com o grupo intervenção?
4 - O estudo demonstrou significância estatística? P< 0,05
5 - A conclusão do estudo foi realizada de acordo com desfechos primários ou secundários?
Atentar para conclusões baseadas em análises de subgrupos com estudos com resultados negativos.
5 - Há viés de aferição - desempenho?
6 - O estudo foi cross-over ou realizado com intenção de tratar - Viés de tratamento?
7 - O estudo foi truncado? Interrompido precocemente.

Relevância
Quanto aos desfechos:
1 - O desfechos primários foram desfechos clínicos ou substitutos?
2 - Se foram desfechos clínicos eram desfechos duros ou softs?
3 -  Se o desfecho foi combinado, o resultado decorreu de componentes mais importantes ou menos importantes do desfecho?
4 -  Atentar para o valor do Risco Relativo - Ele representa o efeito intrínseco do tratamento.
5 - Preferir as reduções absolutas de Risco (  R(c) - R(t) ) x 100 - O risco absoluto varia de acordo com o risco basal do paciente e representa a verdadeira magnitude do tratamento.
6 - Calcular o NNT = 100/RAR - NNT menor que 50  tem um bom impacto.

Aplicabilidade
1 - Em quem será aplicado o estudo? Verificar critérios de exclusão do estudo e características da amostra - Tabela 1.
2 - Como será aplicada a terapia?
3 - Onde será aplicada a terapia?
A pergunta chave é? O paciente envolvido no estudo é tão diferente do meu paciente, de forma que não possa aplicar aquela intervenção?

Para estudos negativos P>0,05

O estudo tem tamanho de amostra suficiente para demonstrar diferença clinicamente importante, caso essa tenha ocorrido?
Aprofundar análise, enquanto a erro do tipo II.






quarta-feira, 8 de julho de 2015

IMPROVE- IT - Análise Crítica



Recentemente, no New England Journal of Medicine  foi publicado o aguardado estudo IMPROVE - IT, o primeiro ensaio clínico a testar adequadamente a associação entre ezetimiba e estatina. No que se refere ao mecanismo farmacológico, sabia-se até então que a ezetimiba em adição a um medicamento da classe das estatinas teria a capacidade de potencializar o efeito antilipidêmico da última. Entretanto, a aplicabilidade clínica desta associação esbarrava em um estudo que demonstrasse benefício clínico em desfechos relevantes hard endpoints - ( Mortalidade geral, IAM-não fatal, AVC).  Já comentamos nesse blog a importância da realização de estudos com desfechos clínicos relevantes e não desfechos clínicos substitutos, portanto, até o presente momento não haviam evidências científicas suficientes( nem como evidência indireta) que justificassem o uso das ezetimibas. Na ausência de evidências devemos aplicar o princípio da hipótese nula.

Esse grande trial foi realizado com cerca de 18.000 pacientes estáveis com 10 dias ou menos depois de uma SCA - isto inclui IAM com supra de ST, IAM sem supra de ST e angina instável ) com um LDL menor que 125. Percebam que embora pacientes de alto risco, de um subgrupo específico, a concentração de LDL dos pacientes eram baixas.   Foram elegíveis para o estudo mulheres e homens com 50 anos de idade ou mais.
Os pacientes foram randomizados para receber 10 mg de ezetimiba associado a 40 mg de sinvastatina vs 40 mg de sinvastatina mais placebo em follow-up médio de 6 anos. Os desfechos primários envolveram um combinado de desfechos duros com outros desfechos mais moles - soft endpoints - ( Morte cardiovascular, IAM-não fatal, AVC- não fatal, rehospitalização por angina e revascularização miocárdica). 

O estudo testou as seguintes hipóteses:

Associação de ezetimiba mais estatina reduz eventos cardíacos?
Is even (lower) is even better? - Quanto menor as taxas de LDL-C, melhor? Princípio do More is More.
Verificou também a segurança do ezetimiba. Um medicamento para chegar ao mercado deve ser efetivo, eficaz e seguro.

Quais os resultados demonstrados pelo IMPROVE-IT?

O estudo demonstrou uma redução de risco relativo de 6,4% de eventos cardiovasculares; 13% de IAM não-fatal; 21% avc isquêmico.
Seria necessário tratar 50 pacientes por 7 anos para salvar apenas 1. (NNT)
Foi observado um LDL-médio anual de 53 vs 69 mg/dl no grupo em que houve associação de estatinas mais placebo.
O efeito se replicou em todos os subgrupos, com resultados melhores no grupo de diabéticos - Análise de subgrupo gera apenas hipóteses.

O que podemos inferir?
Primeiro deve-se avaliar a veracidade do estudo. Não podemos aplicar uma terapia proporcionada por um trial se seus resultados não forem confiáveis. Nesse aspecto, os resultados do  IMPROVE-IT são de excelente qualidade. Visto que:
Foi um estudo randomizado, ou seja, o efeito de confusão foi anulado, fazendo com que controle e intervenção tenha as mesmas características( sejam grupos homogêneos) basta ver a tabela 1, com as características da amostra.
O estudo foi duplo-cego, que evita viés de aferição e viés de desempenho. Este estudo, além disso, teve um adequado poder estatístico evitando erro do tipo II ( grande valor amostral, com cálculo adequado da incidência de eventos esperados, ademais a significância estatística foi demonstrada nos grupos testados, demonstrando que os resultados tiveram mínima probabilidade de serem alvos do acaso. Este fato ainda é reforçado pelo fato de que a conclusão foi feita com base em desfechos primários e não em comparações múltiplas (desfechos secundários)
Este trabalho ainda foi desenvolvido com a intenção de tratar - evita viés de tratamento, e não foi um estudo truncado - interrompido precocemente. O truncamento pode superestimar os resultados.

Enquanto a Relevância
O estudo apresentou um NNT de 50 com uma redução de risco relativo de 6% e redução de risco absoluto de 2%. Este NNT é considerado de moderada relevância.

Mas, nesse aspecto temos que nos atentar aos seguintes conceitos:
A análise isolada do risco relativo pode nos dar uma impressão superestimada dos resultados, isto porque o risco relativo é intrínseco ao tratamento, enquanto o risco absoluto varia de acordo com o risco de base do paciente.
Em medicina baseada em evidências o que torna o tratamento eficaz ou não é a sua capacidade em reduzir o risco absoluto dos pacientes daquela amostra estudada.

O princípio da moderação

A maioria das intervenções em cardiologia promove reduções plausíveis e moderadas de mortalidade, ou seja, a verdadeira redução de risco relativo encontra-se entre 10 e 25% e não entre 40 e 60%, esta redução de risco relativo de aspecto moderado provocará reduções de risco absoluto de 2 a 4%.
Numa população de alto risco ex: pacientes portadores de ICC, pacientes portadores de SCA de alto risco, esta redução de risco absoluto é aceitável porque do ponto de vista da saúde pública evitará muitos eventos e mortes. Contudo, percebam que no IMPROVE-IT tivemos uma redução de risco pequena, com um redução risco de absoluto ideal e um NNT de moderado impacto.
O que houve nesse aspecto? O NNT foi insuflado pelo uso de desfechos combinados, já que sabiam que o efeito do tratamento (RR) seria pequeno (LDL médio de 90) e por usarem uma grande amostra de pacientes de alto risco.
A lição que fica é que para riscos relativos pequenos, teremos um impacto pequeno do tratamento.
Isto faz com que o benefício apresentado pelo estudo não seja tão significativo assim.

Magnitude de redução de risco relativo com emprego de intervenções cardiovasculares
Intervenção
Cenário
N° de pacientes
RRR
Aspirina
IAM
18.773
23%
Trombolíticos
IAM
58.000
18%
Estatinas
Prevenção Secundária
20.312
23%
Espironolactona
ICC
1.663
30%





IMPROVE - IT e aplicabilidade clínica

 O estudo foi liberado depois da última diretriz de Dislipidemias da AHA, que recomenda o uso de estatinas mais potentes.
 Quais seriam os resultados se houvesse um comparação com estatinas de maior potência? A sinvastatina de 40 mg tem moderada potência.
Não seria melhor trocar por uma estatina de alta potência, como recomendado pelas últimas diretrizes?
Será que os pacientes com um perfil de colesterol mais elevado, talvez hipercolesterolemia moderada a alta como no WOSCOPS – LDL médio de 190,não se beneficiariam mais, tendo em vista o uso de um desfecho combinado?
Qual seria o custo-efetividade?

Em conclusão:

Verifica-se que o IMPROVE - IT dá ainda mais reforço a hipótese de que o colesterol, (LDL-C) é um importante fator de risco cardiovascular, visto a reversibilidade de dose-resposta nos pacientes tratados com as medicações antilipidêmicas – a reversibilidade de dose-resposta é um importante critério de causalidade, o mais importante deles. Contudo, como evidência direta  seus resultados são de pouca utilidade, visto a magnitude do benefício ser pequena. 

sábado, 30 de maio de 2015

TRH, doenças cardiovasculares. Contrariedades à evidência vigente.

Diretrizes embora importantes para orientação de prática médica, podem conter inúmeros conflitos de interesse, pontos de divergência, e, principalmente, seleção de artigos de  baixa qualidade metodológica que podem vir a orientar uma conduta médica através de recomendações inadequadas quanto a verdadeiro nível e força da evidência.  As diretrizes devem ser criticadas como qualquer artigo científico e a crítica a um artigo( vamos nos ater aos ECRS, porque estes são padrão-ouro em orientação de terapêutica) envolvem alguns passos que inicialmente focam em questões metodológicas que identificam fatores de confusão e diversos viéses que tornam aquele trabalho inverosímel. Percebam que as recomendações de diretrizes dependem muito da qualidade dos artigos, das evidências existentes, como já supracitei. Existem casos de recomendações absurdas que vão contra o conhecimento vigente, destes que aplicamos diariamente na prática clínica, com base em trabalhos clássicos, muito bem delineados.  Isto nos atenta para o fato de que nem tudo que é velho é ruim em comparação ao novo que  "deveria ser" sempre "bom", e que devemos ter um olhar crítico e cético no momento de analisar a evidência científica.


Esta postagem de hoje tem como alvo discorrer sobre um tópico absurdo da diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia  e Sociedade de Climatério que classificou a terapia de reposição hormonal como Classe IIa, nível de evidência B , para prevenção de eventos cardiovasculares.

Timing Hyphotesis 
Muitos dos entusiastas da TRH como prevenção de eventos cardiovasculares utilizam do conceito acima para justificar os resultados de estudos que demonstram uma relação de proteção entre TRH e DCV. Este conceito tem associação com o momento de uso de uma terapia, a depender do momento em que você a institui , ela pode ser benéfica ou maléfica, isto parece muito estranho, mas realmente ocorre, temos como exemplo o caso da trombólise química no Iam com supra.  Percebam que no caso da TRH, as evidências que demonstram seus supostos benefícios argumentam sobre uma introdução precoce deste tratamento, no período da transição menopáusica ou nos primeiros anos de pós menopausa. Acontece que este conceito não pode ser justificativa para mudança de conduta terapêutica e não podemos aceitar esta explicação causal, por mais plausível que seja,  quando a hipótese testada  em estudos científicos tem resultados espúrios.  Analisem a qualidade desta recente publicação que demonstra haver redução de eventos cardiovasculares, sem aumento da incidência de qualquer tipo de câncer ou câncer de mama no grupo tratado com TRH. Vejam que este estudo é um estudo pequeno, aberto, por isso sujeito a perfomance bias, com baixo poder estatístico, não há cálculo da incidência esperada do desfecho, então não podemos saber se o n utilizado foi adequado. Qualquer diferença encontrada em um estudo com poder estatístico duvidoso, faz com que seus resultados tenham veracidade questionável. O acaso parece ser uma boa explicação para os resultados encontrados neste trabalho, portanto,  me espanta a utilização deste estudo como argumento para uso de TRH em prevenção primária cardiovascular. Acho que isto é reservado a um exercício de retórica daqueles que vemos em congresso, onde não podemos analisar a qualidade da evidência.

A ordem das evidências.
A diretriz da SBC argumenta ter feito análise  de 574 estudos, dos quais foram retirados 114 para profunda análise e composição da base de conhecimentos. Neste aspecto, percebam que você não consegue identificar as referências desses estudos mais precisamente. Mas, de maneira geral, as evidências a respeito da TRH e doenças cardiovasculares, podem ser divididas em estudos observacionais, ECRS com desfechos substitutos e ECRS com desfechos primordiais.  

I - Estudos de coorte 
Analisando profundamente os estudos observacionais percebam que muitos deles são semelhantes em apontar redução da incidência de DCV entre usuárias de estrogênio. Um dos mais importantes, inclusive citado em apostilas do Med curso é a coorte com enfermeiras americanas - The Nurses Healthy Study - que acompanhou cerca de 59.000 mulheres por longo período e observou uma redução de 40% na incidência de DAC. Acontece que embora esta associação tenha sido demonstrada, estudos observacionais como abordamos aqui são (1) geradores de hipóteses, (2) embora controlando adequadamente  muitos fatores de confusão, sempre há um fator residual neste tipo de delineamento,(3) demonstram apenas associações não podendo demonstrar causalidade. Há também a possibilidade, nestes estudos observacionais e abertos - da ocorrência do efeito Hawthorne. O fato do indivíduo saber do benefício da terapia pode fazer com que estes se adequem a melhores hábitos de vida, ou seja, mudanças de comportamento que podem trazer algum benefício clínico. 

II - Ensaios clínicos randomizados com desfechos substitutos.
Temos como exemplo, o maior deles o PEPI - este estudo foi desenvolvido da seguinte forma: Alocou(houve randomização) 875 mulheres para receber placebo ou diversos associações de hormônios. No grupo que recebeu o tratamento, houve diminuição de HDL e redução de fibrinogênio.  

Desfechos substitutos x Desfechos Relevantes
Para fins didáticos, é sempre importante estabelecer que os desfechos substitutos compõe variavéis fisiológicas e laboratoriais ( fibrinogênio e HDL, respectivamente) em estudos que não tem poder estatístico adequado para mensurar desfechos clínicos.  Estes estudos são geradores de hipóteses e não alteradores de conduta.

Desfechos relevantes ou desfechos clínicos compõe aqueles que são realmente importantes para o paciente, eles avaliam o verdadeiro impacto da doença na vida do doente. Como exemplo temos: morte ( o principal desfecho clínico), avc, iam, internação em icc, fratura óssea na osteoporose, qualidade de vida na asma. Estes desfechos quando analisados por um estudo de terapia fazem com que este estudo a depender dos resultados possa alterar uma conduta. 

III - Ensaios Clínicos Randomizados com desfechos relevantes
Chegamos ao momento de separar o joio de trigo. Aqui teremos a resposta, onde refutaremos a hipótese de que a TRH possa ser indicada como prevenção para eventos CV, como indicado na diretriz.
O estudos HERS surpreendemente demonstrou haver um aumento do risco de 52% para DAC em mulheres em uso de TRH, risco que  se reduziria com o passar do tempo, mas continuaria alto, de acordo com que fora observado no segmento. Além disso, houve aumento de eventos tromboembólicos  nestas mulheres. Vejam, como este estudo de boa qualidade, refuta os achados de pesquisas observacionais e de ECRS mal delineados.

Por fim, temos o clássico WHI, o maior estudo realizado para prevenção primária de DAC em mulheres em uso de TRH na pós-menopausa. Este clássico estudo que randomizou 16.000 mulheres demonstrou um aumento da incidência de doenças cardiovasculares, câncer de mama, avc e eventos tromboembólicos e é  baseado nisto que não se deve prescrever TRH em mulheres pós-menopausa com o objetivo de prevenir eventos cardiovasculares.
Ademais, ao contrário da diretriz, diversas outras sociedades condenam e contra-indicam o uso desta terapia com esse objetivo. 
Analisem a qualidade das evidências e comparem com os achados do WHI e vejam quais são mais consistentes. Vejam que  neste estudo (WHI) não houve interação entre idade e tratamento, demonstrando que seus efeitos não foram diferentes nos mais jovens, jogando por terra o conceito de janela de oportunidade abordada na diretriz.

A diretriz diz ainda que o julgamento clínico não pode levar em conta somente os resultados de ensaios clínicos randomizados com placebo, e sim, um conjunto de variáveis clínicas e fatores de risco do paciente. Um argumento "florido" para justificar condutas não embasadas em evidências. Na ausência de evidências, deveríamos ficar sempre com a hipótese nula. O peso da evidência deve justificar nossas condutas em decisão multifatorial.

Por fim, demonstra-se que diretrizes devem ser questionadas à luz do peso das evidências, e demonstra-se que até prove-se o contrário ,TRH como vemos na prática clínica, sendo na maioria das vezes praticada de forma correta, não deve ser prescrita com o intuito de prevenção primária de DAC em mulheres pós-menopausa. Mas, fica a pergunta. Quais os impactos de uma péssima indicação feita por uma diretriz?