sábado, 21 de março de 2020

Hidroxicloroquina e tratamento de COVID – 19: Uma desproporção entre entusiasmo e nível de evidência






Nos últimos dias, tomou conta do noticiário e das principais mídias sociais a informação de que havia sido publicado um estudo que teria demonstrado um grande benefício da associação de Hidroxicloroquina e Azitromicina no tratamento de pacientes infectados pela nova doença emergente, a COVID – 19.
Imediatamente, políticos, profissionais das mais variadas áreas e principalmente o público leigo festejaram a nova descoberta com muito entusiasmo.
No meio médico, as opiniões ficaram divididas, aclamada por certos profissionais e muito criticada por alguns dos mais eminentes especialistas.
O encorajamento para uso de Hidroxicloroquina nos pacientes com COVID – 19, partiu da premissa demonstrada em uma pesquisa publicada por chineses que demonstrou a capacidade da Hidroxicloroquina de inibir a SARS-COV – 2 “in vitro”, devido ao seu potencial imunomodulador. Essa capacidade foi superior a cloroquina, testada anteriormente.

Diante de algo plausível, pesquisadores passaram a questionar sobre o efeito clínico dessa medicação em pacientes com COVID- 19, iniciando protocolos de pesquisa.
Quando uma nova evidência é publicada, precisamos ser céticos e avaliá-la com o rigor metodológico que ela requer. Essa avaliação sempre parte da premissa da hipótese nula que define que “um fenômeno só existe a partir do momento que é demonstrado”. Refutada a hipótese nula, consideramos o fenômeno existente, aceitando a hipótese alternativa.
Além disso, frente a esses fatos devemos nos questionar. O entusiasmo é proporcional à qualidade da evidência?

O artigo francês.

Qual a conclusão do artigo?
“Despite its small sample size our survey shows that hydroxychloroquine treatment is significantly associated with viral load reduction/disappearance in COVID-19 patients and its effect is reinforced by azithromycin”.

Com esse resultado, devemos avaliar a validade interna do estudo quanto a erros sistemáticos.

Viés ou erros sistemáticos se referem a uma série de erros que podem ocorrer em qualquer etapa da pesquisa que podem tornar os resultados da mesma espúrios.
No referido estudo, pode-se perceber que não houve randomização, o que o torna suscetível a um risco elevado de viés de confusão. A randomização torna os grupos homogêneos, balanceando possíveis fatores confundidores entre os grupos. Ao analisarmos a tabela 1 da presente análise, podemos verificar desproporções nas características entre os grupos.

Outro detalhe que pode ser percebido é a confusão entre grupo intervenção e grupo controle. Estranhamento, pacientes que deveriam ser excluídos do estudo de acordo com critérios de exclusão, passaram a fazer parte do grupo controle, criando mais heterogeneidade entre os grupos.  Além disso, pacientes de outros centros, foram alocados exclusivamente para o grupo controle.

Pacientes dentro dos critérios de exclusão, assim como aqueles que recusaram-se participar do estudo não deveriam ter sido incluídos na análise. Sabe-se que os doentes que se recusam a participar de ensaios clínicos geralmente tendem a ser menos graves do que aqueles que participam, gerando viés de seleção.

Prosseguindo, nos deparamos com um estudo “open label”, ou seja, aberto, muito suscetível a viés de aferição do desfecho. Classicamente, estudos abertos que fazem uso de hard endpoints como mortalidade geral, anulam este viés pela objetividade do desfecho. Porém, com um desfecho substituto e interpretável não podemos garantir que isto não possa ter ocorrido devido a ausência de cegamento de pesquisadores e dos responsáveis pela interpretação do desfecho. Um estudo sem cegamento também aumenta a possibilidade de viés de desempenho, o uso de Azitromicina apenas posteriormente é um indicativo disso. É bem provável que os indivíduos alocados nesse grupo tenham sido mais bem assistidos.

A ausência da intenção por tratar.

Um ensaio clínico deve ser sempre realizado com a intenção de tratar, isso garante que controle foi analisado como controle independente do que ocorreu.  Garante também que tratamento deva ser analisado como tratamento, independente da tomada ou não da medicação por parte do indivíduo alocado no grupo. No estudo 6 pacientes do grupo Hidroxicloroquina saíram da análise. 3 porque foram transferidos para UTI, outro porque foi transferido para outro serviço e 1 que faleceu. Isso caracteriza uma análise por protocolo e tende a subestimar os resultados do estudo. Não houve perda de follow-up porque os pacientes continuaram disponíveis para serem avaliados. O paciente que faleceu não foi incluído na análise.

O desfecho substituto

Desfechos substitutos geralmente são variáveis laboratoriais. São tidos apenas como geradores de hipóteses. Não existe uma necessária correlação entre eles e desfechos clínicos.
No referido artigo, o uso da negativação da PCR viral não está associado necessariamente a melhoria dos sintomas. Diferentemente, o estudo que envolveu o uso de Kaletra (combinação lopinavir/ritonavir), demonstrou uma associação negativa para desfechos clínicos.

Avaliação quanto aos erros aleatórios.

Um estudo pode estar suscetível aos efeitos do acaso. Acasos e viéses se entrelaçam proporcionando resultados falsos.
Dentro desse aspecto devemos observar dois tipos de erros. Erro do tipo 1 – na linguagem médica um falso positivo. Erro do tipo 2 – um falso negativo.
O estudo necessitaria de arrolar cerca de 48 pacientes para apresentar um poder estatístico de 85 %, assumindo uma taxa de eficácia de 50 % da Hidroxicloroquina no grupo intervenção com negativação do PCR no sétimo dia.
Observa-se que o estudo arrolou cerca de 36 pacientes, demonstrou uma diferença de eficácia de 87,5 % se compararmos o grupo Azitromicina mais hidroxicloroquina ao grupo controle. Um resultado que certamente destoa do verdadeiro poder estatístico do estudo. Analisando também a probabilidade pré-teste do estudo refutar a hipótese nula, uma eficácia de 50 %, parece um resultado “bom demais para ser verdade”.

Qual a conclusão?
Em conclusão temos um estudo de alto risco de viés e erros aleatórios com uso de desfecho substituto.
Utilizando o sistema GRADE qual seria o nível da evidência?

Seguindo a tabela abaixo, provavelmente nível D de evidência.


Qualidade da evidência pelo Grade.
A – Alta
Há forte confiança de que o efeito verdadeiro aproxima-se do efeito estimado.
B – Moderada
Há moderada confiança na estimativa do efeito. O verdadeiro efeito está próximo daquele estimado, mas existe possibilidade de ser substancialmente diferente.
C – Baixa
A confiança na estimativa do efeito é limitada. O verdadeiro efeito pode ser substancialmente diferente daquele estimado.
D - Muito Baixa
Há pouca confiança na estimativa de efeito. O verdadeiro efeito provavelmente é substancialmente diferente do estimado.

Qual a recomendação quanto a estes achados?

Estudos com alto poder estatístico tendem a ser negativos. Estudos pequenos tendem a ser positivos.  Por isso particularmente, acredito que a probabilidade pré-teste da Hidroxicloroquina funcionar para COVID-19 seja muito baixa, o que não exclui a possibilidade de estudos mais bem delineados ser realizados. Presumo que num ambiente onde a miopia cientifica tomou conta, inclusive daqueles que deveriam ser mais céticos e racionais, o uso “off label” fora de protocolos de estudo já deva estar sendo realizado. No meu entender, dentro do princípio do ônus da prova mesmo que enfretando uma situação de pandemia, porém com uma doença de baixa letalidade, não há justificativa para isso. A recomendação para uso da medicação é extremamente fraca. Devemos preservar o rigor científico e dar tempo a ciência, com intuito de resguardar a segurança dos próprios pacientes. Aguardemos os próximos capítulos.