domingo, 4 de outubro de 2015

A aplicabilidade das Evidências - Validade Externa




Finalizando a série sobre análise crítica de evidências científicas, este post tem como objetivo abordar sobre onde, como e em quem a terapia testada será aplicada. A aplicabilidade de uma evidência está relacionada ao conceito de validade externa - onde busca-se a generalização dos resultados de uma terapia testada para uma população de interesse. 

De maneira bastante diferenciada, na aplicabilidade somos mais permissivos, momento no qual utilizamos um dos princípios mais importantes da Medicina Baseada em Evidências -  "O princípio da complacência".  

Ao julgarmos a aplicabilidade de uma terapia, devemos ter em mente dois conceitos:
A  aplicabilidade requer uma análise menos objetiva do que a veracidade e relevância.
Na análise de veracidade somos mais sistemáticos e rigorosos.  E, por que somos mais rigorosos durante a avaliação da validade interna de um estudo?
Essa rigoridade é justificada pelos riscos existentes ao aplicarmos uma terapia que gerou resultados falsos. A veracidade tem intima relação com a hipótese nula, em que a depender da existência de viéses e acaso, um fenômeno é considerado inexistente até que seja demonstrado. Na prática médica, quando há moderada incerteza sobre uma conduta, não devemos aplicá-la , considerando este mesmo princípio. 

Durante a aplicabilidade quando demonstrada a veracidade de uma informação, buscamos extrapolar os resultados daquela intervenção para pacientes que não fizeram parte daquela amostra estudada, pois o potencial de generalizar resultados de um ensaio clínico para o maior número de indivíduos possíveis é o que motiva a realização destes estudos.

De maneira bastante rotineira, tem-se visto diversas críticas em relação ao tipo de população selecionada para determinados ensaio clínicos, principalmente nos aspectos que envolvem questões demográficas e culturais, contudo é na análise de aplicabilidade que até um certo limiar, podemos refutar estes argumentos. I) Grande maioria dos estudos que testaram o efeito de anti-hipertensivos, estatinas, trombolíticos, antibióticos e vacinas, foram feitos em populações bastante diferenciadas da nossa (altamente miscigenada), devido a isto privaríamos nossos pacientes brasileiros do benefício comprovado destas medicações? Há alguma razão para este benefício se perder no nosso paciente? Julgamos que não , portanto fazemos o uso destas medicações nos nossos doentes. II)  Sabe-se que geneticamente temos nossas particularidades, apenas gêmeos idênticos têm material genético 100% igual, mesmo assim há existência de mais semelhanças do que diferenças entre as populações, o que nos permite até numa análise mais filosófica refutar o próprio conceito de raça, e é baseado nisso que estamos autorizados (pelo princípio da complacência) a adotar uma terapia que foi testada, por exemplo,  em europeus - Estatina para prevenção primária - WOSCOPS.


 Como realizar a análise de aplicabilidade?

Primeiramente devemos pensar sobre "em quem será aplicada aquela terapia". Quando estamos de posse de um artigo científico, devemos analisar as características da amostra, que geralmente está presente na Tabela 1. Nessa tabela, encontraremos informações relativa a frequências dos gêneros, a média de idade dos pacientes, comorbidades mais frequentes e etc.  Além disso, é importante ter conhecimento sobre os critérios de inclusão e exclusão do estudo e sabendo disso temos certeza que é nesse tipo de paciente que a terapia funciona como evidência direta.  Como mencionamos, um dos objetivos da realização de um trial é sua capacidade de generalização de resultados para uma população alvo diferente daquela testada no estudo, caminhando em direção a validade externa, quando temos a nossa frente um paciente diferente daquele da amostra estudada devemos fazer o seguinte questionamento: "Este paciente é tão diferente daqueles do estudo, de forma que os resultados não se apliquem a ele, ou de maneira que os benefícios se perderão ?"


Por exemplo, os clássicos estudos em ICC foram constituídos por pacientes com idade de até 75 anos, entretanto haveria algum motivo para não realizarmos o tratamento dessa condição em indivíduos com 76, 77, 85 anos? Não, por isso tratamos esses pacientes, contudo com o avançar da idade a evidência vai ficando mais indireta e os benefícios podem se perder, o que nos gera incertezas em relação ao tratamento dessa condição com determinadas medicações em indivíduos com idade muita avançada.

A indicação de terapia a base de corticóides inalatórios na DPOC depende da estratificação do risco do paciente através dos critérios de GOLD (VEF1 menor ou igual a 50%) ou da presença de exacerbações muito frequentes. Haveria algum motivo para acreditar que o benefício dessa terapia se perderia em um paciente com VEF1 de 52%? Não, por isso a terapia poderia ser indicada nesse tipo de paciente.
Geralmente, para testar um conceito os grandes ensaios clínicos, selecionam amostras de alto risco, onde é mais fácil demonstrar um benefício estatístico. Se,  nessas populações de alto risco , o benefício não ocorrer, é muito provável que também não ocorra numa população de baixo risco.
Por isso, durante o raciocínio clínico ao aplicarmos o princípio da complacência devemos ter em mente que ao extrapolarmos os resultados para populações de baixo risco, os benefícios tendem a ser menores. 

O clássico WOSCOPS , primeiro estudo que constatou o benefício do uso de Pravastatina em homens sem eventos cardiovasculares prévios, demonstrou uma redução de mortalidade cardiovascular às custas de um NNT de baixo impacto , 143. De frente a um paciente em uso de estatinas para prevenção primaria com queixas intensas de mialgia haveria algum motivo para não reduzir a dose(diminuir a intensidade do tratamento), ou suspender a medicação, se a clínica me indicar que a qualidade de vida do paciente está muito prejudicada? Não, pois probabilisticamente, teria de tratar muitos pacientes para salvar um, através de uma terapia que não reduz mortalidade geral. 

Até este momento, falamos de "em quem a terapia será aplicada ", mas é importante pesar aspectos, sobre "como ela será aplicada?" e o "ambiente em que será aplicada?".

A questão de como aplicar a terapia envolve a necessidade de compreender aspectos sociais e econômicos, bem como , o custo efetividade.
Poderíamos utilizar sinvastatina 40 mg em um paciente com indicação de terapia de alta intensidade - atorvastatina 40 mg, mas com poucas condições econômicas de adquirir esta medicação? Julgo que sim, pois  embora a terapia esteja numa moderada intensidade com o uso da sinvastatina, a droga seria adquirida gratuitamente e não privaríamos nosso paciente do benefício do seu efeito antilipidêmico - em contraste evitaríamos o efeito colateral naquele momento devido ao aumento da dosagem da medicação.

É valido também utilizar a droga mais cara e mais benéfica no momento mais agudo da doença e após isso, para uso crônico substituir por  uma medicação "menos eficaz" em comparação a outra droga, mas com bom custo-efetividade, se as condições  econômicas do paciente não permitirem o uso da primeira medicação muito mais cara.

No que refere-se ao ambiente de aplicabilidade da terapia, esta pode ser reservada muito bem para intervenções cirúrgicas ou procedimentos mais invasivos. Prestemos atenção que determinados procedimentos , dependem muito da estrutura do serviço em que foi realizada, da experiência da equipe cirúrgica e das condições dos pacientes que foram estudados, dessa forma, estaremos cientes da capacidade de reprodutibilidade desses resultados.

Vale muito também prestar atenção no nível de Evidência. Evidência C, só deve ser aplicada quando a fisiopatologia se impor. Por exemplo, porque tratar pacientes para Hipertrigliceridemia com uso de fibratos numa abordagem primária, se ainda não foi demonstrada uma relação causal entre esse lipídeo e eventos cardiovasculares? Porém, se os níveis estiverem demasiadamente elevados a despeito das mudanças de estilo de vida e as taxas estiverem acima de 500, pelo risco de pancreatite - plausibilidade biológica, o tratamento se impõe.

 Percebe-se que a análise de aplicabilidade envolve uma cadeia de questionamentos de  "quem, como e onde?" relacionados a dois princípios importantes da MBE - o princípio da hipótese nula e o princípio da complacência que nos auxiliam no julgamento clínico para fornecer o cuidado assistencial mais adequado ao paciente. Devido a isso, está demonstrado que a MBE jamais tomará o lugar do julgamento clínico na individualização de condutas médicas.