domingo, 25 de fevereiro de 2018

Independência da associação e análise multivariada




Suplementos de antioxidantes são  muito ingeridos pelo público leigo ou mesmo frequentemente prescritos por médicos.
O uso de omega 3 tem ganhado popularidade devido aos seus efeitos anti-inflamatórios no endotélio vascular, portanto com o potencial teórico de reduzir a incidência de doenças cardiovasculares em indivíduos já expostos ou mesmo de prevenir novos eventos em indivíduos com risco cardiovascular "usual".
Diversos estudos observacionais prospectivos demonstraram benefício desses suplementos na redução de eventos cardiovasculares ou morte súbita.
Resultados estes, que foram contrapostos por estudos clínicos, entre eles, o ensaio clínico ALPHA OMEGA, que randomizou mais de 4 mil indivíduos com idade entre 60 e 80 anos com história  de infarto agudo do miocárdio para receber doses de omega 3 por um seguimento de 40 meses, onde a análise final não constatou redução de desfechos duros nos indivíduos já infartados.
Destaca-se também recentemente , nova meta-análise de ensaios clínicos randomizados, que avaliou o efeito de omega 3 em diferentes subgrupos de pacientes com doença cardiovascular, também não demonstrando benefício dessa intervenção. 

Para compreendermos a diferença entre os resultados frequentemente divergentes de estudos observacionais e ensaios clínicos, é importante entender como os fenômenos causais ocorrem e o conceito de independência da associação.


Na busca por determinar a causalidade dos fenômenos existentes, precisamos observar inicialmente se há associação entre as variáveis (fatores) avaliados.
Identificada a associação, devemos verificar se ela é realmente causal, quanto mais forte uma associação maior a probabilidade de ela ser causal, todavia, além da força desta associação, ela deve ser independente de fatores confundidores - confounding factors.

Uma associação pode ser afetada pelo viés de confusão que coloca em cheque toda cadeia de causalidade, já definido  em abordagens prévias.

Como bem documentado , estes fatores de confusão podem ameaçar de maneira contundente a validade de um estudo observacional.

Uma variável que prejudica a independência de uma associação deve apresentar todas essas três características:

  • Estar associada com à exposição 
  • Estar associada ao desfecho (doença) 
  • Não fazer parte da cadeia causal entre exposição e doença, criando uma associação "artificial" ou falsa 


A esta variável damos o nome de variável confundidora.





Quais são os potenciais fatores confundidores? 

No caso do uso de anti-oxidantes é bem provável , que em estudos observacionais , fatores como modo de vida -  que envolvem dieta, atividade física ou mesmo a ausência de um fator de risco podem interferir na associação criando associações espúrias.
É bem provável que indivíduos que consomem suplementos vitamínicos sejam também mais saudáveis naturalmente.

Uma abordagem para identificar quais os fatores classicamente associados com exposição e doença seria prover uma análise dos fatores já identificados em estudos prévios.
Fatores de risco não modificáveis, como idade e sexo são sempre candidatos.

Outra forma de identificar estas potenciais variáveis, envolvem uma análise estatística inicial mais "liberal", buscando associações entre variáveis que podem ter associação com o desfecho através de plausibilidade biológica e depois controlá-las através de análises multivariadas.

A independência de uma associação será confirmada após a análise multivariada, onde a relação bruta entre exposição e doença é sempre diferente quando identificado o fator confundidor.

O que é análise multivariada ? 

Na maioria das situações clínicas, muitas variáveis agem juntas para produzirem efeitos. No mundo multivariado, de múltiplos fatores causais essas relações são complexas. A análise multivariada serve para construir um modelo de predição independente e para participar da avaliação de causalidade de um determinado fator.
Diversas variáveis são colocadas no mesmo modelo matemático e analisadas simultaneamente - buscando ajustar (controlar) o efeito de todas essas variáveis, determinando então seu efeito independente.
Além disso, a análise multivariada serve para identificar interação, que é frequentemente confundida com confusão.
A interação refere-se apenas a modificação de efeito - por exemplo, uma droga tem efeito diferente em gêneros diferentes? 

Os testes mais utilizados para realização de análise multivariadas envolvem o uso da regressão logística, ANOVA multivariada, ANCOVA e regressão linear múltipla.

Quando analisamos um estudo (nesse caso, observacional), devemos avaliar se ele é resultado de acaso, viés ou de fato é uma realidade.
Se nessa análise, associações forem identificadas  devemos verificar se elas foram independentes, prestando atenção na realização de análises para controle de fatores confundidores

Portanto, como principais conhecimentos do post de hoje, devemos ter em mente que: 

  • A associação precisa ser forte e independente - 
  • Ensaios clínicos são menos susceptíveis a vieses de confusão quando comparados a estudos observacionais - 
  • Ao analisarmos um estudo que busque associações, na análise crítica, devemos buscar por análises multivariadas para controle de fatores confundidores - 



















sábado, 17 de fevereiro de 2018

A força de associação as medidas de efeito e a decisão clínica



As abordagens anteriores foram importantes para definirmos o significado do valor P e do Intervalo de Confiança (IC) , durante essa abordagem foram mencionados termos importantes, tais como, associação  e força da associação.
A força de associação é um importante critério de causalidade de Hill e basicamente quanto mais forte é essa associação, maior a probabilidade de ela ser causal.
Uma associação fraca geralmente tem maior probabilidade de ser mediada por fatores de confusão.

A força da associação pode ser "mensurada" através das medidas de efeito, que utilizam conceitos de riscos diversos e podem ser determinadas por diferentes proporções para propostas diferentes.

Aqui abordaremos as seguintes medidas de efeito:  o risco absoluto, risco relativo, a redução absoluta do risco , redução do risco relativo.

Conceito prático e definição.

Em 1999, foi publicado na revista Lancet o clássico ensaio clínico  CIBIS II , este estudo avaliou eficácia do uso de Bisoprolol na redução de mortalidade em paciente portadores de Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC).
Neste estudo, foram alocados aleatoriamente 2647 pacientes portadores de ICC classe III e IV sintomáticos com fração de ejeção igual ou inferior a 35%  que recebiam terapia padrão com diuréticos e ieca para receber bisoprolol versus placebo.
A dose de bisoprolol variou de 1.25 mg até o máximo de 10 mg e ao final de um seguimento médio de 1,3 anos observou-se redução de mortalidade por todas as causas no grupo bisoprolol - (156 [11,8%] vs 228 [17,3%] com um hazart ratio de 0,66 % (IC 95 % 0,54 -0,61, p < 0,0001).

Analisando este estudo , o que seria o  risco absoluto e qual o risco absoluto de morte nos grupos?

O risco absoluto é a probabilidade de um evento acontecer em uma determinada população.
Tem o mesmo valor que a medida de incidência e frequentemente esses termos são intercabíveis. Este risco pode ser traduzido como risco basal de um indivíduo e é a melhor forma de compreender fatores de risco e como esses fatores podem afetar a condição clínica de um paciente.
Ao nos questionarmos;  qual a incidência de uma determinada doença em grupo inicialmente livre dela, teríamos a expressão para o cálculo do risco absoluto, traduzido através da seguinte fórmula: I* = n ⁰ de casos novos durante um intervalo de tempo /  n ⁰ de pessoas no grupo.

respondendo a segunda pergunta,  teríamos que fazer o cálculo abaixo, realizado através de dados extraídos da seguinte tabela que relaciona expostos e não expostos e a ocorrência dos desfechos nos grupos.



Ra  no grupo bisoprolol = a/ a + b = 156/981 = 0,159 = 16%

Ra  no grupo placebo   = c/ c + d  = 228/920 = 0,247 = 25 %

Assim, o risco absoluto no grupo placebo era de 25 % durante todo o seguimento, enquanto que após o tratamento com bisoprolol o risco de morte passou a ser de 19 %.



Quanto ao risco relativo, o que seria? qual a forma de calculá-lo?


O risco relativo é uma medida de efeito utilizada para medir a probabilidade dos indivíduos expostos de desenvolverem a doença em relação aos não expostos. Quantas vezes é mais provável para que as pessoas expostas se tornem doentes em relação às não expostas?



Para calcularmos o risco relativo devemos utilizar a seguinte fórmula: RR = I expostos / I não expostos.

Neste caso, poderíamos obter o risco relativo a partir da relação entre as incidências de eventos nos grupos.

Retirando  dados da mesma tabela chegaríamos a um valor muito próximo do hazart ratio mencionado.
Isso quer dizer que o risco de mortalidade de um indivíduo com ICC classe III ou IV em uso de bisoprolol foi 66 % menor do que aqueles que não utilizaram à droga.

Um estudo publicado no jornal americano de medicina (JAMA) analisou os efeitos da  duração da amamentação na incidência de diabetes nas mulheres que amamentaram comparativamente às mulheres que não amamentaram.
Os pesquisadores analisaram dados do Estudo (CARDIA) num follow-up de 30 anos. O estudo foi feito com 1235 mulheres negras e brancas sem diabetes antes da gestação e que tiveram pelo menos um filho nascido vivo depois do início do estudo.
Após um acompanhamento médio de cerca de 24 anos , verificou-se que o risco relativo de incidência de diabetes foi de 0,75 ( IC 95% de 0,51 - 1.09 ) para as mulheres que amamentaram de zero a seis meses; 0,52 ( IC 95 % de  0, 31 a 0, 87) para as mulheres que amamentaram por mais de seis e menos de um ano; e 0,53 ( IC 95% de 0,29 a 0,98) para as mulheres que amamentaram por mais de 12 meses com um valor P = 0,01 em comparação as mulheres que não amamentaram.


Interpretando os resultado do estudo acima, o risco relativo para os indivíduos que amamentaram mais de 6 meses foi sempre < 1 , o que indica que a amamentação dentro deste período esteve associada como um fator de proteção para ocorrência de diabetes, ou seja, o grupo que amamentou apresentou um risco relativo 50 %  menor de desenvolver diabetes do que aquelas que não amamentaram.

O risco relativo é o resultado mais comum relatado em estudos sobre riscos, indicando a força de associação entre a exposição e a doença.

Prosseguindo na análise, poderia me perguntar qual a redução absoluto de riscos e a redução relativa dos riscos?

Tomando o estudo CIBIS II novamente como exemplo, a RAR seria basicamente calculado pela subtração dos riscos entre controle  e grupo droga.
Logo, RAR  (RAR =  Ra c - Ra t =   26 - 19 % = 9%. Ou seja, a droga ( bisoprolol) reduziu em 9% o risco de mortalidade na ICC classe III e IV, indicando a verdadeira magnitude do benefício dessa droga na terapia.

A partir do próprio risco relativo poderíamos calcular a redução do risco relativo pela seguinte expressão 1 - RR = 1 - 0,64 = 0,36 ou 36 %.

Redução absoluta do risco e o risco relativo - 

Este estudo  comparou o efeito da idade e densidade mineral óssea nos riscos relativos e absolutos de mulheres com idade de 50 a 99 anos pós - menopausa. O mesmo demonstrou claramente que o risco  relativo permaneceu constante, enquanto o risco atribuível mudou conforme o risco basal. Os resultados verificaram que  risco relativo da DMO permaneceu estável conforme o passar da idade , enquanto a redução absoluta do risco (risco atribuível) quase dobrou conforme o passar das décadas, independente da DMO.
Interpretando estes resultados para a realidade dos ensaios clínicos e para prática clínica, o fato é que a redução absoluta do risco não depende apenas do efeito intrínseco do tratamento, mas também do risco basal, já o risco relativo depende do efeito intrínseco do tratamento , sendo constante.

Aplicando o risco relativo ao risco absoluto de um paciente, poderemos saber a exata redução absoluta de risco com uma determinada terapia naquele indivíduo.
Suponhamos que as estatinas promovem uma redução relativa de risco de 31% e ao realizar o cálculo do risco de eventos cardiovasculares em 10 anos com score ASCVD da AHA meu paciente apresentou um risco basal de 30%.  31 %  x 30 % = 0,093 = uma redução absoluta do risco de 9%, por outro lado,  se o risco basal dele fosse menor essa redução absoluta também seria menor.

Ao compararmos as reduções absolutas e as reduções relativas , observamos que os números decorrentes do riscos relativos são muito mais "atraentes" , dando a falsa impressão de que para aplicar uma terapia em uma situação clínica seria melhor concentrar-se nos riscos relativos.
De fato, clínicos podem interpretar que um tratamento é muito mais eficaz concentrando-se apenas na redução do risco relativo pelo seu valor geralmente maior que a redução absoluta do risco, dando a falsa impressão de que o tratamento é muito mais benéfico do que o real.
Contraditoriamente ,  um estudo publicado no British Medical Journal  ao analisar as medidas de efeito mais utilizadas nas revistas de grande impacto, demonstrou uma maior frequência de uso das medidas relativas em relação às medidas absolutas, as medidas absolutas foram relatadas apenas em 18 % dos artigos.

Contudo, para a tomada de decisão clínica  ou para verificar a magnitude do dano de um fator de risco é melhor concentra-se na redução absoluta do risco ou para estudos epidemiológicos sobre fatores de risco ( no risco atribuível à exposição ) do que nos riscos relativos.



















sábado, 3 de fevereiro de 2018

O que é o Intervalo de Confiança ?

                                       




Ao estudar uma associação entre variáveis utilizando o mais adequado teste estatístico para aquela situação, tem - se o resultado de um valor P. O valor P nos é útil para determinar se aquela associação é significativa do ponto de vista estatístico e determinar a influência do acaso nos resultados. Porém , a análise isolada de um valor P significativo não nos oferece informações a respeito do tamanho do efeito observado no tratamento (de forma que não podemos inferir significância clínica), não nos oferece informações a respeito do poder do estudo e de sua precisão e não nos permite estimar também a força daquela associação.

A força da associação é um importante critério para estabelecer causalidade e a investigação epidemiológica tem nos permitido utilizar ferramentas como as medidas de associação, entre elas, o risco relativo ou razão de chances  para quantificar o grau de uma associação entre exposição e desfecho.

Contudo, as medidas de associação não nos fornecem informações a respeito da significância estatística do estudo, geralmente atreladas ao valor P. Com o objetivo de reunir informações a respeito da força da associação e significância estatística foram criados os Intervalos de Confiança (IC).

Os intervalos de confiança colocam mais ênfase na magnitude do efeito e nos permitem inferir se um estudo foi ou não preciso



Conceito prático e definição.


Estudo recente publicado na revista stroke foi realizado com o intuito de observar a associação entre doença periodontal e a incidência de avc isquêmico.
Os pesquisadores analisaram dados de 10.362 participantes de meia-idade sem história de avc e que estavam participando da coorte ARIC (atherosclerosis risk in communities) e que foram seguidos regularmente desde a década de 80.
Os participantes foram classificados quanto a aqueles que faziam acompanhamento regular , ou seja, visitavam o dentista pelo menos uma vez ao ano, ou irregular - aqueles que faziam acompanhamento odontológico apenas quando sentiam desconforto, precisavam de tratamento ou nunca frequentavam o dentista.
Dentro de um seguimento de 15 anos  observou-se a ocorrência do desfecho (avc) em 584 participantes.
Após determinados ajustes para variáveis de confusão, verificou-se que os pacientes que faziam seguimento regular (menores taxas de doença periodontal) apresentaram uma menor incidência de avc  - (HR ajustado = 0,77; IC 95%, 0,63 - 0,94).



O que significa isso?


Na medicina baseada  em evidências ao realizarmos uma pesquisa precisamos trabalhar com a técnica de amostragem, isso porque estudar toda a população se torna inviável, se assim o fosse, teríamos a real certeza de nossos resultados.

Quando estudamos uma amostra populacional podemos ter azar nessa observação e atestar valores muito diferentes da realidade, para estimarmos uma maior precisão a respeito da magnitude do efeito necessitamos desses intervalos de confiança.
Suponhamos que eu tenha a respeito do estudo acima, ficado um pouco receoso com o resultado e tenha realizado um estudo similar que demonstrou um risco hazart de 0,76, enquanto num terceiro estudo replicado de maneira similar foi demonstrado um risco hazart de 0,75 até chegar a realização de 100 estudos.
Ao completar 100 estudos vamos observar variações quanto a estimativa ponto que é basicamente o valor do Hazart ratio, Risco relativo, Razão de chances - esta variação nas medidas de associação reflete uma faixa de valores possíveis para a real magnitude do efeito,  chamada de intervalo de confiança.

Um intervalo de confiança de 0,63 - 0,94 , implica em dizer que se eu repetir o estudo 100 vezes, em 95 dessas 100 vezes o valor do RR estará dentro daquele intervalo para mais ou para menos. Os outros cinco estudos excluídos estão associados a valores tão extremos que foram descartados porque provavelmente ocorreram devido ao acaso.

Outra importante constatação  com relação a isto é que quanto mais estreito o intervalo de confiança, mais preciso será o estudo.

O IC de 95% é o mais comumente utilizado na literatura , entretanto, podem ser estabelecidos outros valores para o IC com base em 99% ou 90%.
 Lembrando que o IC define a incerteza na estimativa da magnitude do efeito na população real e não na população do estudo.
O intervalo de confiança é calculado através do tamanho da amostra, pelo erro técnico de medida do estudo e pelo grau de confiança, nos permitinfo inferir também informações semelhantes oriundas das atribuídas ao valor P.

Se o risco relativo = 1 (efeitos iguais no grupo intervenção e controle), estiver entre o limite inferior e superior do intervalo de confiança, pode-se inferir que o valor P seria superior ou igual a 5%.
Caso esse valor para o risco relativo seja inferior a 1 ou superior a 1 (efeito de proteção ou de risco, respectivamente) não estiver interpolado pelos limites superior e inferior do intervalo (ou seja, não cruzar o 1), pode-se inferir que o estudo possui significância estatística.

Interpretando os resultados na prática - 



Estudo 1 - RR = 10 ( IC 95%; 1,4 - 22,5) 

Estudo 2 - RR = 10 ( IC 95%; 0,5 - 11,9) 
Estudo 3 - RR = 10 (IC 95 %; 1,4 - 2,1) 

De posse desses conceitos podemos dizer que o estudo 2 , não alcançou significância estatística, provavelmente seus resultados são decorrentes do acaso , não sendo confiável porque ora a variável de exposição se comporta como fator de proteção , ora como fator de risco (lembre - se que neste exemplo o IC passa pelo número 1).
Embora o estudo 1 e o estudo 3 tenha sido significativos, o estudo 3 é o mais preciso , pois tem o IC mais estreito.

Para resumir:  é importante denotar que o IC possui mais vantagens em relação ao valor P, como dar mais ênfase a magnitude do efeito e fornecer informações mais acuradas sobre o poder estatístico do estudo.