segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A atorvastatina no Diabético Tipo II ( ASPEN study)



Hoje falaremos sobre o ASPEN study, que randomizou indivíduos com diabetes tipo 2 não insulino-dependentes para Atorvastatina 10 mg vs placebo com objetivo de testar o efeito na prevenção de eventos cardiovasculares nesses indivíduos.

Qual o racional do estudo?

O estudo baseia-se em evidências epidemiológicas de que o paciente diabético tem um risco aumentado para doenças cardiovasculares em comparação com indivíduos não diabéticos, isso porque a presença de DM está associada a uma série de fatores de risco, como anormalidades do perfil lipídico, prejuízo renal, HAS, obesidade, inflamação microvascular que acabam por elevar o risco desses indivíduos. Logo, testar atorvastatina com objetivo primário de prevenção  de eventos cardiovasculares seria plausível.

Como o estudo foi desenhado?
O estudo recrutou indivíduos com idade entre 40 e 75 ( homens e mulheres) com LDL menor ou igual a 140 se documentado IAM prévio ou alguma intervenção do ponto de vista cardiovascular em tempo superior há 03 meses ou com LDL maior ou igual a 160 sem eventos cardiovasculares.

Foram excluídos principalmente pacientes com DM tipo 1, IAM ou algum procedimento cardiovascular nos últimos 03 meses, prejuízo severo na função renal, ICC tratada com digoxina, Hb1ac maior do que 10%, doença hepática.

Do ponto de vista metodológico o estudo foi randomizado, duplo-cego, com follow-up de 4 anos e desenvolvido com a intenção de tratar.

Quais os desfechos?
O desfecho primário foi um composto de morte cardiovascular envolvendo uma série de desfechos que podem ser encontrados no resumo do estudo.

Qual o resultado do estudo?
 O estudo não demonstrou redução significativa dos desfechos compostos quando comparou-se o uso de atorvastatina 10 mg vs placebo em indivíduos com DM tipo 2 tanto para prevenção primária quanto para prevenção secundária.


Como analisar um estudo negativo?

Erros aleatórios - 

1- Se um estudo é negativo, devemos nos questionar quais as razões que levariam a ocorrência do famoso  erro tipo II -  o estudo ter ficado com a hipótese nula, sendo que deveria ter ficado com a hipótese alternativa. Ou seja, não encontrou uma associação que na verdade existe.Um estudo tem que ser planejado para ter um poder estatístico de no mínimo 80%, sendo 20% a taxa de erro aceitável.

2 - Deve-se analisar qual a diferença que o autor propõe encontrar na incidência dos desfechos nos grupos testados. Quando menor essa diferença, maior deve ser a amostra. Precisamos de uma amostra cada vez maior para encontrar diferenças pequenas.
Por exemplo: Quero testar o efeito de uma determinada medicação X em indivíduos de baixo risco cardiovascular  vs  placebo para redução de eventos cardiovasculares. Nesse caso, necessitaria de um n muito grande, para detectar diferenças pequenas , pois a probabilidade de um infarto acontecer nesse grupo de indivíduos é muito baixa.

Devemos no caso do ASPEN study verificar que o autor menciona que necessitaria de 1600 sujeitos para um poder estatístico de 90%, afim de detectar uma redução de 32% no RR em 4 anos  com cerca de 18% de eventos no grupo placebo e 12,2% no grupo atorvastatina, lembrando que o estudo não foi desenhado para detectar diferenças entre prevenção primária ou secundária de eventos cardiovasculares.


3 - Deve-se olhar a incidência dos desfechos no resultado final.
No estudo mencionado a incidência do desfecho primário foi de 13,7 % no grupo atorvastatina e 15% no grupo placebo.

4 - Devemos olhar na Incidência cumulativa e verificar se as curvas se sobrepõe ou não, suspeitando de diferenças que não alcançaram significância quando as curvas não estão próximas.

No ASPEN study a  incidência de eventos no grupo atorvastatina ficou um pouco acima do planejado, entretanto,o estudo não demonstrou significância estatística , pois provavelmente o uso de desfechos compostos , tais como, hospitalizações por angina ou intervenções podem ter diluído o efeito da atorvastatina no grupo tratado.




Analisando a figura acima podemos ver uma certa tendência da superioridade da Atorvastatina na prevenção primária e secundária, mas que pode ter sido diluída como dito acima, pela ocorrência de 47 intervenções e 36 hospitalizações por angina no grupo placebo, estes, desfechos mais softs e de menor relevância.




Ao olharmos as curvas, verificamos que elas não se sobrepõe, o que nos leva a suspeita de que possa ter ocorrido diferença que não alcançou significância.


Quanto ao uso de estatinas em diabéticos?

O estudo acima contrariou os resultados do ASCOT, CARDS e HPS, que demonstraram previamente o efeito anti-lipidêmico benéfico das estatinas na redução de eventos cardiovasculares em diabéticos. Outro ponto a ressaltar é que  a amostra de pacientes no ASPEN study foi constituída de indivíduos diabéticos com risco cardiovascular menor , sendo incluído um número inferior de homens, tabagistas e hipertensos em comparação aos outros estudos.
Ademais, a presença de desfechos compostos determinou a perda de relevância do estudo, bem como, diluiu o efeito benéfico na redução de IAM no grupo atorvastatina.
Obviamente, é mais fácil  críticar um estudo de maneira retrospectiva que confronta resultados de benefícios de estudos prévios, mas a possibilidade de erros aleatórios influenciando os resultados do ASPEN study na época não poderia ter sido ser descartada.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

AFCAPS/TexCAPS




AFCAPS/TexCAPS - O primeiro estudo a testar o benefício das estatinas em mulheres 






Sabe-se que existem evidências convincentes a respeito do benefício do uso de estatinas na redução dos níveis de colesterol e consequentemente da redução de eventos cardiovasculares e mortalidade.
Entretanto, assim como idosos de maneira geral constituem um grupo de pacientes subrrepresentados em ensaios clínicos, no que tange à presença de mulheres nos estudos com estatinas, elas são incluídas numa frequência bem menor se comparadas aos homens, na amostra de indivíduos estudados.

Nessa série, publicaremos os principais estudos relacionados ao tratamento das dislipidemias, sendo o clássico AFCAPS/TexCAPS, o primeiro estudo a testar o efeito anti-lipidêmico das estatinas na redução de eventos cardiovasculares em mulheres, sem doença cardiovascular manifesta, o alvo de nossa discussão.

Vamos a alguns detalhes...

Objetivos: O estudo objetivou avaliar o efeito da terapia a base de Lovastatina 20 - 40  mg vs Placebo em homens e mulheres sem evidência de DAC manifesta, portanto, um estudo de prevenção primária. Desse modo, foi desenhado um ensaio clínico randomizado com 5608 homens e 997 mulheres, duplo-cego, controlado por placebo -  o que evita, viéses de confusão e aferição do desfecho.

Critérios de Inclusão: homens entre 45 e 73 anos e mulheres entre 55 e 73 anos, sem doenças cardiovasculares prévias e que preenchessem os seguintes critérios de lipidograma: CT entre 180 e 264, LDL entre 130 e 190, HDL <45 em homens e <47 em mulheres, TG < 400.


Desfechos: Ao final de um segmento médio de 5,2  anos objetivou-se avaliar a ocorrência de um primeiro evento cardiovascular maior (MACE), denominado como IAM fatal ou não-fatal, morte súbita e angina instável.

Resultados: Observou-se uma redução de risco relativo de 37 %, na ocorrência de eventos cardiovasculares maiores no grupo tratado - foram cerca de 183 desfechos no grupo padrão vs 116 eventos no grupo tratado.



Conclusão: Conclui-se no estudo que uso de Lovastatina reduziu a ocorrência do primeiro evento cardiovascular tanto em homens quanto em mulheres, através da diminuição das taxas de LDL e aumento dos níveis de HDL.




Comentário a respeito da Metodologia e Aplicabilidade - 



O truncamento...




Inicialmente, do ponto de vista metodológico, embora AFCAPS/TexCAPS tenha sido um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, com conclusão com base em desfechos primários , este foi um estudo truncado.



Truncar um estudo significa interrompê-lo precocemente . O truncamento é interessante para indústria farmacêutica, pois além de garantir um resultado positivo,  gera economia  do ponto de vista financeiro.

Um estudo só pode ser truncado, quando durante o desenvolvimento da pesquisa, o tratamento utilizado esteja causando efeitos adversos na população estudada ou quando os dois grupos são tão idênticos que é improvável que a hipótese nula seja refutada.

Quando há truncamento do estudo, existe um grande risco de haver superestimativa do efeito da terapia. Ademais, não há garantia de que o efeito positivo da terapia não tenha sido decorrente do acaso, pois como o estudo foi interrompido precocemente, não permite-se que haja tempo do estudo se auto-corrigir ap longo do follow-up projetado.

O estudo acima foi projetado para detectar uma RRR (redução de risco relativo de 30 a 35%) , com cerca de 320 participantes experimentando um primeiro desfecho, entretanto foi interrompido com 267 desfechos.

Estudos sobre truncamento demonstram que os pares truncados em comparação com os não-truncados superestimam a RRR em até 29%. 
Nesse caso, acredito que o benefício demonstrado pelo estudo tenha sido verdadeiro, mas com uma  RRR menor. 

O uso de desfechos combinados...

O uso de desfechos combinados não representa um problema de múltiplas comparações, só existe uma análise estatística sendo feita, ele aumenta a confiabilidade do estudo, pois evita erros aleatórios, mas em contrapartida permite que possa ocorrer diminuição da relevância, pois desfechos mais importantes e menos importantes estão agrupados.

No estudo acima houve diminuição de eventos cardiovasculares às custas de IAM e angina instável de maneira quase que semelhante. (  95 vs 57 , RR 0,60  IC 0,43 - 0,83) , (87 vs 60 , RR 0,68 IC 0,49-0,95), uma redução interessante, mas às custa de um desfecho que não pode ser considerado duro.
Outro ponto é que o estudo não foi desenhado para testar redução de mortalidade, o desfecho mais importante.

Aplicabilidade...

Diferentemente dos outros trials este estudo além de ter incluído um número mais significativo de mulheres na amostra, permitindo fazer a inferência do benefício de estatinas nessa população, incluiu uma população com alto risco cardiovasculares, mas com taxas de colesterol mais próximas da normalidade. O CT médio foi de 221 , enquanto que o LDL médio foi de 150.

Ademais, muitos pacientes possuíam alto risco cardiovascular, decorrente da presença de comorbidades como HAS, DM e Tabagismo. 

O estudo assim, ao analisarmos as características de base dos indivíduos, de certa forma suporta a intervenção de que deve-se pensar no uso de estatinas em indivíduos com LDL entre 130 e 190, com risco cardiovascular mais elevado. De acordo com a últimas recomendações maior do que 7, 5%.  

O uso de metas...

Percebe-se que neste estudo, o LDL médio ao final do segmento foi cerca de 115 no grupo estatina, acima do que é recomendado como meta por muitas diretrizes para indivíduos diabéticos ,por exemplo, ou de alto risco. Denota-se que a busca por um alvo lipidêmico é questionável, pois os estudos não foram desenhados desta forma.