domingo, 3 de dezembro de 2017

O estudo PROSPER a recomendação da US prevention Task Force e o uso de estatinas em idosos.










Embora, o uso de estatinas esteja consolidado como agente capaz de reduzir a mortalidade geral e por causas cardiovasculares para prevenção secundária, ainda existem muitas controvérsias com referência ao uso de estatinas em determinados subgrupos, principalmente  no que tange à prevenção primária de eventos cardiovasculares e mortalidade.
Dentro destes subgrupos, pode-se destacar o uso da medicação em idosos.  Muitos médicos ainda hesitam em realizar a prescrição destas medicações nestes pacientes, por dúvidas principalmente quanto à segurança e eficácia-efetividade. Como mencionado inúmeras vezes, sabe-se que idosos são frequentemente pouco representados em ensaios clínicos, são mais vulneráveis a efeitos adversos do uso de medicações e muito mais suscetíveis à polifarmácia , o que proporciona um risco maior de interações medicamentosas.

De forma divergente, sabe-se que são uma população muito mais suscetível a eventos cardiovasculares maiores, provavelmente devido a um fator de risco não modificável , chamado idade.
Para confirmar este dado acima  ao utilizarmos o estimador de risco cardiovascular da AHA , numa situação hipotética, verificaríamos que num indivíduo de 79 anos, sem Has com Pressão arterial de 130/80,  colesterol total de 240 e hdl-c de 50, teríamos um rico cardiovascular elevado de 32.8% em 10 anos.
Estaríamos então inclinados a prescrever estatinas nesta população e esbarraríamos na recomendação da US prevention task force que contra-indica o uso de estatinas nesta  faixa-etária, devido a ausência de evidências, principalmente para o ponto de corte de idade de 75 anos.

Chegamos então ao objetivo desse post , que é questionar  se isso é realmente um fato, ou se é uma  recomendação reducionista , engessando princípios da medicina baseada em evidências.

Quanto a primeira questão  - é realmente um fato que idosos são subrrepresentados nestes estudos, entretanto, não é um fato dizer que o uso de estatinas nessa população deva ser evitado por carência de evidências, como se todas as nossas evidências fossem diretas.
Ademais, ainda a respeito disso, o uso de estatinas nessa população tem sido uma crescente. Evidências apontam que cerca  de 28% dos indivíduos com idade entre 75 e 79 anos fazem uso de estatinas, assim como, 22 % dos indivíduos acima de 80 anos.
Sobre isso, logo a seguir discutiremos o estudo PROSPER , uma das nossas melhores evidências para esta indicação, que randomizou idosos com idade entre 70 a 82 anos para uso de pravastatina tanto em prevenção primária como secundária.

Voltando à questão, quanto a recomendação reducionista , quando praticamos MBE, não podemos nos esquecer do principio da complacência. 
Este princípio determina que podemos extrapolar condutas testadas em indivíduos que são pouco diferentes daqueles que foram avaliados nos ensaios clínicos.
Lembremos que durante a nossa prática clínica, em muitas vezes , o paciente não será exatamente igual a aquele do estudo, para tanto, devemos nos questionar através da máxima: " Esse paciente é tão diferente daquele do estudo que  há alguma razão para o benefício se perder?"
Portanto, um indivíduo de 75 anos é tão diferente assim de um indivíduo de 76, 77, 78, 79 , 80 anos?

Além disso, quanto a essa questão, temos o princípio da prova do conceito. Idosos fazem parte de grupos de alto risco para eventos cardiovasculares, portanto como a redução do risco relativo é intrínseca ao tratamento , para uma mesma RRR, teríamos uma maior redução absoluta do risco e menor NNT.

Acho  que estes princípios tornam a indicação de estatinas nesse grupo, no mínimo razoável. 

E quanto as evidências diretas nesse grupo? 
Podemos então analisar o Estudo PROSPER -


1 - Qual foi o objetivo do estudo?
Testar o benefício do uso de estatinas na redução de eventos cardiovasculares em indivíduos com idade entre 70 e 82 anos com fatores de risco ou história de doença cardiovascular manifesta.

2 - Qual a metodologia do estudo? 
Estudo randomizado duplo-cego de 5804 indivíduos para o grupo pravastatina 40 mg x Placebo, com a intenção de tratar e um follow-up de 3, 5 anos.
O desfecho primário foi um combinado de vários desfechos - morte por doença coronariana, iam não fatal, avc não fatal.
O estudo não foi desenhado para detectar redução de mortalidade por todas as causas, lembrando que do ponto de vista estatístico, necessitária de um poder de 92 % para detectar uma redução de risco relativo de 20% no desfecho primário.

3 - Quais foram os resultados ? 
O uso de pravastatina reduziu as concentrações de LDL em 34% e reduziu a incidência do desfecho primário em 15% - ( hazard ratio 0.85%, IC 95 % 0 .74 - 0.97 p = 0.014).
A redução do desfecho combinado ocorreu às custas de Iam não fatal e morte por doença coronariana.
A incidência de avc não fatal em ambos os grupos continuou não afetada.
Isoladamente a mortalidade por doença coronariana decaiu 24 %. 

4 - Qual a conclusão do estudo?
O estudo concluiu que o uso de pravastatina nesta faixa-etária teve capacidade de reduzir o risco de eventos coronarianos, indicando possivelmente  a indicação do uso para indivíduos idosos.

Análise crítica - 

Do ponto de vista metodológico o estudo acima tem baixo risco de viéses. Randomizado  evitando viéses de confusão, duplo cego com desfechos duros bem definidos minimizando viéses de aferição e feito com intenção de tratar evitando viéses de tratamento.



Sobre a relevância dos resultados , vale a pena  anexar os gráficos aqui para melhor visualização. 


Nesse caso, acho que vale uma menção ao poder do estudo  - o mesmo foi projetado para ter um poder de 92%, objetivando uma redução de 20% na incidência do desfecho primário - um combinado de Iam não fatal , avc não fatal e morte por doença coronariana, contudo alcançou uma redução do risco relativo de 15%, ou seja, menor do que o esperado.  Acredito que este resultado deveu-se a incapacidade do estudo de ter detectado redução nas taxas de avc com o uso de pravastatina, um dos componentes do desfecho combinado.
O predito para o grupo placebo foi de 8 %, alcançado no estudo metade do predito. 
Este estudo sugere que o tempo de follow-up para avaliar o benefício das estatinas na prevenção de avc deve ser maior do que o tempo de seguimento adotado pelo estudo mencionado, parece que a redução na incidência de eventos coronarianos ocorre de maneira mais precoce com uso de estatinas.
Outro ponto a ser mencionado é o baixo poder estatístico do próprio estudo para detectar essa alteração - os próprios autores mencionam que a redução 20 % era na verdade de 40%.




O uso de pravastatina reduziu a incidência do desfecho primário em 15% - ( hazard ratio 0.85%, IC 95 % 0 .74 - 0.97 p = 0.014).

Quanto analisamos a relevância de um desfecho deve-se prestar atenção na magnitude do mesmo.
Para uma redução de risco relativo de 15 %, teríamos uma redução de risco absoluto de 2 %. O RAR é calculado através da diferença entre a Incidência de eventos nos não expostos e expostos ( RAR = Ine - Ie). Para esta redução absoluta do risco teríamos um NNT de 50. Lembrando que o NNT é calculado através da seguinte fórmula: NNT = (1/RAR x 100). 
Nesse caso, teríamos de tratar 50 indivíduos para reduzir 1 combinado de morte por Dac , avc ou iam não fatal. um desfecho considerado de boa magnitude.


Outro resultado interessante envolveu a redução isolada de morte por doença coronariana - um desfecho hierarquicamente superior à redução de iam não fatal ou , por exemplo , avc não fatal.
No estudo pode-se observar uma redução do risco relativo de 24% - ( hazard ratio 0.76, IC 95 % 0.58 - 0.99  p =0.043).



Neste caso, obtivemos com o tratamento uma RAR de 0.9%. Para esta redução absoluta do risco teríamos um NNT de 111.
Teríamos de tratar 111 idosos para salvar 1 de uma morte por DAC. Um efeito próximo de moderado-pequeno para eventos fatais.

O estudo também tomou os devidos cuidados de fazer a avaliação da redução de eventos cardiovasculares de acordo com a prevenção primária ou secundária. Em ambos os casos o efeito se replicou  para o desfecho primário composto. Lembrando, que esta foi uma análise post-hoc, devendo ser interpretada  de acordo com as suas limitações.




Conclusão
Com base no estudo PROSPER , princípio da prova do conceito e da complacência, acho que a indicação de estatinas em muito idosos, desde que a evidência não fique muito indireta , é no minimo razoável. O uso das estatinas não foge à regra das demais terapias de comprovado benefício, normalmente temos de tratar muitos indivíduos para salvar 1 e não sabemos quem de fato irá se beneficiar. Além disso, de acordo com as últimas evidências parece que quanto menor o LDL melhor, portanto, se seu avó ou seu paciente octagenário tem um LDL próximo de 140 ( como no estudo acima), vale a pena conversar sobre o uso de estatinas.




domingo, 3 de setembro de 2017

O uso de estatinas em idosos - uma análise Post-hoc do estudo ALLHAT


Continuando a saga de revisar os principais estudos relacionados ao uso das estatinas, hoje falaremos sobre uma análise post-hoc do  estudo ALLHAT-LLT, braço lipídico do clássico estudo com anti-hipertensivos, o ALLHAT study.


Qual foi o racional do estudo?
O estudo baseou-se no fato de que o uso de estatinas em idosos é crescente, evidencias apontam que cerca 28% dos indivíduos com idade entre 75 e 79 anos fazem uso de estatinas, assim como, cerca de 22% dos indivíduos com idade superior a 80 anos. Contudo, as evidências de benefícios nessa população, ainda são contraditórias.
Para tanto, esta análise teve como objetivo avaliar o efeito do uso de pravastatina de 40 mg em indivíduos com idade superior a 65 anos, sem evidência de doença aterosclerótica manifesta que eram portadores de hipertensão arterial sistêmica e hipercolesterolemia moderada.

Qual a metodologia do estudo?
Realizou-se uma subanálise do estudo  ALLHAT-LLT, que incluiu adultos com idade superior a 55 anos com hipertensão estágio 1 e 2 com níveis de LDL entre 120 e 189.
ALLHAT-LLT teve um seguimento de cerca de 6 anos com uma amostra inicial de cerca de 10355 indivíduos, que foram randomizados através de um estudo aberto para receber ou não as doses de pravastatina.
Na análise post-hoc do estudo supracitado, foram excluídos os indivíduos com idade inferior a 65 anos e com evidência de doença cardiovascular, restando apenas 2867 participantes.

Qual o desfecho primário?
O desfecho primário da subanálise envolveu a aferição da mortalidade por todas as causas.
*Nota, convém citar que os desfechos secundários escolhidos envolvem a mortalidade por causas específicas por doenças cardiovasculares e IAM não fatal.
A escolha do desfecho primário como mortalidade total não é bem definida na literatura de MBE, contudo geralmente é justificada quando a intervenção testada pode trazer malefícios, o que nos faz valorizar a mortalidade total como desfecho principal ou como componente de um desfecho combinado que será o primário. 
Porém, o que mais justifica o uso de mortalidade total , seria a grande objetividade deste desfecho. 


Quais os resultados? 

86% dos pacientes com mais de 75 anos no grupo pravastatina estavam tomando anti-hipertensivos, enquanto que 93% dos indivíduos no grupo placebo.
As médias de pressão sistólica nesses grupos foram de respectivamente 150 mmg/Hg no grupo pravastatina e 147, 5 mm/Hg no grupo placebo.
Outro resultado interessante foi que ao final de 6 anos de seguimento no grupo pravastatina 78% dos pacientes estavam tomando a medicação, enquanto que 29% no grupo de cuidados usuais estavam tomando a mesma - efeito esperado, haja vista, que o estudo foi desenvolvido com a intenção de tratar. 
A taxa de cross-over  foi mais acentuada nos indivíduos com idade inferior a 75 , 32% dos indivíduos com idade inferior a 74 anos até 65 anos estavam fazendo uso de pravastatina e faziam parte do grupo de cuidados usuais.

Não houve diferença significativa no que tange a mortalidade por todas as causas no grupo pravastatina.
Para participantes com idade entre 65 e 74 anos, ocorrem 141 mortes no grupo tratamento versus 130 morte no grupo controle ( HR, 1.08, IC 95%, 0,85 - 1,37, P = 0.55) . Houve um aumento não significativo da mortalidade no grupo de idade superior a 75 anos, com 92 mortes no grupo pravastatina versus 65 no grupo controle ( HR, 1.34, IC 95%, 0.98 - 1,84, P= 0.07). 

Quando se fala em análise de subgrupos deve-se testar a interação, de modo que a idade não modificou o efeito do tratamento com pravastatina.

Considerações importantes

Primeiramente, deve-se atentar para o fato de que estudos que envolvem idosos , mais propriamente dito os ECRs, são mais escassos, sendo esta população, subrrepresentada.

Desta forma, essa análise, mesmo que tratando-se de subgrupos, trata-se de uma excelente iniciativa.

Este estudo concluiu que não há diferença na mortalidade geral e por causas cardiovasculares em pacientes idosos com 65 anos ou mais e portadores de hipercolestorelemia moderada e hipertensão, entretanto algumas limitações devem ser pontuadas.

I - Trata-se de uma análise post- hoc. Ou seja, foi uma análise não pré-especificada.
A priori, análises de subgrupo são geradoras de hipótese e não definidoras de conduta.

II - O conceito de timimg hyphotesis - indivíduos que iniciariam o tratamento com estatinas antes provávelmente são diferentes daqueles indivíduos que iniciaram mais tardiamente, o que pode acarretar numa diferença de benefício. E, embora pareça história de "feitiçaria", existem terapias que a depender do tempo que são iniciadas apresentam benefício ou não, como exemplo, temos o caso de trombólise em Avc e Iam, onde tempo é cérebro ou músculo, respectivamente.

III - O estudo foi aberto, entretanto, por utilizar a mortalidade geral, que é o mais objetivo dos desfechos, acredito que o risco de viés de aferição tenha sido atenuado, embora este dado tenha sido menciona como limitação do estudo.

IV - A presença de cross-over. Quase 30% dos indivíduos do grupo de cuidados usuais migrou para o tratamento com estatinas, enquanto que 22 % do grupo tratamento migrou para o grupo de cuidados usuais.
Uma análise deve ser sempre realizada com a intenção de tratar, simulando o efeito da prática clínica. O grupo que foi alocado como placebo, será sempre placebo independente de ter tomando ou não a medicação. O grupo tratamento sempre será tratamento independente de ter tomado ou não medicação. Quando há migração entre os grupos tem-se o efeito cross-over, sempre devemos tolerar um limite para o efeito cruzado, entretanto, quando ele é próximo ou superior a 30%, pode-se ocorrer um viés de tratamento ou viés de carry over , de forma que podem ocorrer efeitos residuais de ambos os tratamentos. Isso prejudica a análise, alterando os resultados dos estudos.

V - Esta análise contraria os resultados de um grande ECR que demonstrou benefício de estatinas na população idosa.





sábado, 5 de agosto de 2017

O clássico - Jupiter study


Aproveitando o momento da publicação da nova diretriz brasileira de dislipidemias, continuaremos a série clássica de estudos em dislipidemias, tecendo comentários nessa postagem a respeito do clássico Jupiter study.

Este ensaio clínico foi o primeiro a testar o efeito da terapia anti-lipídica em indivíduos sem doença cardiovascular manifesta, com níveis de LDL normais , mas com elevação das taxas de Pcr ultrassensível.

A partir da interpretação dos resultados deste mesmo estudo, metas-alvo para taxas de colesterol passaram a ser buscadas - objetivando reduções mais agressivas, a depender do risco basal do indivíduo.

Equivocadamente, já que o estudo não foi desenhado para isto, "constatou-se" uma incidência maior de DM tipo II no grupo exposto ao uso de rosuvastatina. 

Qual foi o racional do estudo? 

Estudo baseou-se no fato de que análises prévias haviam demonstrado que o uso de estatinas em indivíduos com angina estável, síndrome coronárias agudas, poderiam reduzir taxas de Pcr ultrassensível - um marcador laboratorial - capaz de agravar o risco cardiovascular.

Contudo, até o desenvolvimento deste ensaio clínico não haviam evidências prospectivas de grande impacto, para tanto, o estudo foi desenvolvido para testar o benefício do uso de estatinas de alta intensidade ( rosuvastatina 20 mg ) em indivíduos com níveis de LDL normais , mas com elevação das taxas de Pcr ultrassensível na redução de desfechos cardiovasculares maiores.


Qual a metodologia ?

Ensaio clinico multicêntrico, randomizado, duplo-cego e controlado por placebo.
Foram randomizados cerca de 17 802 indivíduos, homens com cerca de 50 anos ou mais, e mulher com cerca de 60 anos ou mais, que possuíam LDL basal igual ou menor que 130 e uma taxa de Pcr ultrassensível maior ou igual a 2.0 mg/dl.
Nota-se também que embora pouco informado o nível de triglicérides dos indivíduos deveria se situar em taxa igual ou inferior a 500.
Além disto, como já mencionado, estes indivíduos, não deveriam ter doença cardiovascular aterosclerótica manifesta.

Qual o desfecho primário?

Combinado de Iam não fatal, avc não fatal,  hospitalização por angina instável, revascularização e morte por doença cardiovascular.

Quais os resultados? 

Alguns dados descritivos de importância...
Aspirina foi usada em cerca de 16 % dos pacientes, aproximadamente 42 % dos pacientes tinham síndrome metabólica.
A média das taxas de LDL foram de 108, HDL 49, enquanto que respectivamente nos grupos tratamento e placebo a média das taxas de Pcr ultrassensível foram 4.2 e 4.3.

Ao final de 12 meses de seguimento observou-se que no grupo rosuvastatina as taxas de LDL atingiram valores de cerca de 55 mg/dl, enquanto que os níveis de Pcr que caíram para médias de 2.2 mg/dl.
Houve , de fato, uma redução de cerca de 50 % da média dos níveis de LDL e 37% das médias das taxas de Pcr no grupo tratamento em comparação ao placebo.

Quanto ao desfecho primário?

No grupo rosuvastatina foram observados cerca de 142 desfechos cardiovasculares maiores, enquanto que no grupo placebo 251. Houve uma redução de risco relativo no grupo estatina de 44%.
No que se refere aos desfechos combinados, observou-se redução às custas das taxas de Iam não fatal, avc não fatal e procedimentos de revascularização arterial.

Quanto ao impacto do tratamento, necessitou-se tratar cerca de 25 indivíduos para salvar um, dentro do intervalo de 5 anos.

Quanto aos efeitos adversos? 

Não houve diferença significativa nas taxas de miopatia, câncer, alterações gastrointestinais , hematológicas ou renais entre os grupos.

Notou-se aumento nas taxas de Hb1ac no grupo rosuvastatina - um mínima diferença, entretanto, observou-se o relato do aumento dos níveis de DM nos indivíduos em uso da mesma, desfecho que não foi projetado pelo estudo.

Considerações importantes

Provavelmente o benefício encontrado no Jupiter foi verdadeiro, entretanto, deve-se lembrar que o mesmo estudo foi truncado.
O estudo foi interrompido precocemente , dos cerca de 18.000 pacientes, cerca de 300 foram seguidos em cinco anos.
Sabe-se que estudos truncados, a não ser que interrompidos com no minimo 500 desfechos tendem a superestimar o benefício das intervenções, portanto, embora benéfica, a magnitude do desfecho foi menos impactante do que realmente divulgada.

Quanto a presença de diabetes é importante mencionar, que a maior incidência no grupo rosuvastatina deveu-se possivelmente pelo acaso.
Pois, o desfecho não foi pré-especificado. Além de ter não ter sido pré-especificado, não foi desfecho primário, o que pode ter ocorrido pelo problemas das múltiplas comparações. 
Outro ponto importante a mencionar é que a incidência de diabetes no grupo tratamento foi mencionada a partir da observação dos médicos, tornando essa aferição mais susceptível a viéses. Ademais, como presente na seguinte frase: " Nevertheless, physician-reported diabetes was more frequent in the rosuvastatin group (270 reports of diabetes, vs. 216 in the placebo group; P=0.01); these events were not adjudicated by the end-point committee"  ,  o desfecho não foi adjudicado, ou seja, revisado por uma auditoria. 





segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A atorvastatina no Diabético Tipo II ( ASPEN study)



Hoje falaremos sobre o ASPEN study, que randomizou indivíduos com diabetes tipo 2 não insulino-dependentes para Atorvastatina 10 mg vs placebo com objetivo de testar o efeito na prevenção de eventos cardiovasculares nesses indivíduos.

Qual o racional do estudo?

O estudo baseia-se em evidências epidemiológicas de que o paciente diabético tem um risco aumentado para doenças cardiovasculares em comparação com indivíduos não diabéticos, isso porque a presença de DM está associada a uma série de fatores de risco, como anormalidades do perfil lipídico, prejuízo renal, HAS, obesidade, inflamação microvascular que acabam por elevar o risco desses indivíduos. Logo, testar atorvastatina com objetivo primário de prevenção  de eventos cardiovasculares seria plausível.

Como o estudo foi desenhado?
O estudo recrutou indivíduos com idade entre 40 e 75 ( homens e mulheres) com LDL menor ou igual a 140 se documentado IAM prévio ou alguma intervenção do ponto de vista cardiovascular em tempo superior há 03 meses ou com LDL maior ou igual a 160 sem eventos cardiovasculares.

Foram excluídos principalmente pacientes com DM tipo 1, IAM ou algum procedimento cardiovascular nos últimos 03 meses, prejuízo severo na função renal, ICC tratada com digoxina, Hb1ac maior do que 10%, doença hepática.

Do ponto de vista metodológico o estudo foi randomizado, duplo-cego, com follow-up de 4 anos e desenvolvido com a intenção de tratar.

Quais os desfechos?
O desfecho primário foi um composto de morte cardiovascular envolvendo uma série de desfechos que podem ser encontrados no resumo do estudo.

Qual o resultado do estudo?
 O estudo não demonstrou redução significativa dos desfechos compostos quando comparou-se o uso de atorvastatina 10 mg vs placebo em indivíduos com DM tipo 2 tanto para prevenção primária quanto para prevenção secundária.


Como analisar um estudo negativo?

Erros aleatórios - 

1- Se um estudo é negativo, devemos nos questionar quais as razões que levariam a ocorrência do famoso  erro tipo II -  o estudo ter ficado com a hipótese nula, sendo que deveria ter ficado com a hipótese alternativa. Ou seja, não encontrou uma associação que na verdade existe.Um estudo tem que ser planejado para ter um poder estatístico de no mínimo 80%, sendo 20% a taxa de erro aceitável.

2 - Deve-se analisar qual a diferença que o autor propõe encontrar na incidência dos desfechos nos grupos testados. Quando menor essa diferença, maior deve ser a amostra. Precisamos de uma amostra cada vez maior para encontrar diferenças pequenas.
Por exemplo: Quero testar o efeito de uma determinada medicação X em indivíduos de baixo risco cardiovascular  vs  placebo para redução de eventos cardiovasculares. Nesse caso, necessitaria de um n muito grande, para detectar diferenças pequenas , pois a probabilidade de um infarto acontecer nesse grupo de indivíduos é muito baixa.

Devemos no caso do ASPEN study verificar que o autor menciona que necessitaria de 1600 sujeitos para um poder estatístico de 90%, afim de detectar uma redução de 32% no RR em 4 anos  com cerca de 18% de eventos no grupo placebo e 12,2% no grupo atorvastatina, lembrando que o estudo não foi desenhado para detectar diferenças entre prevenção primária ou secundária de eventos cardiovasculares.


3 - Deve-se olhar a incidência dos desfechos no resultado final.
No estudo mencionado a incidência do desfecho primário foi de 13,7 % no grupo atorvastatina e 15% no grupo placebo.

4 - Devemos olhar na Incidência cumulativa e verificar se as curvas se sobrepõe ou não, suspeitando de diferenças que não alcançaram significância quando as curvas não estão próximas.

No ASPEN study a  incidência de eventos no grupo atorvastatina ficou um pouco acima do planejado, entretanto,o estudo não demonstrou significância estatística , pois provavelmente o uso de desfechos compostos , tais como, hospitalizações por angina ou intervenções podem ter diluído o efeito da atorvastatina no grupo tratado.




Analisando a figura acima podemos ver uma certa tendência da superioridade da Atorvastatina na prevenção primária e secundária, mas que pode ter sido diluída como dito acima, pela ocorrência de 47 intervenções e 36 hospitalizações por angina no grupo placebo, estes, desfechos mais softs e de menor relevância.




Ao olharmos as curvas, verificamos que elas não se sobrepõe, o que nos leva a suspeita de que possa ter ocorrido diferença que não alcançou significância.


Quanto ao uso de estatinas em diabéticos?

O estudo acima contrariou os resultados do ASCOT, CARDS e HPS, que demonstraram previamente o efeito anti-lipidêmico benéfico das estatinas na redução de eventos cardiovasculares em diabéticos. Outro ponto a ressaltar é que  a amostra de pacientes no ASPEN study foi constituída de indivíduos diabéticos com risco cardiovascular menor , sendo incluído um número inferior de homens, tabagistas e hipertensos em comparação aos outros estudos.
Ademais, a presença de desfechos compostos determinou a perda de relevância do estudo, bem como, diluiu o efeito benéfico na redução de IAM no grupo atorvastatina.
Obviamente, é mais fácil  críticar um estudo de maneira retrospectiva que confronta resultados de benefícios de estudos prévios, mas a possibilidade de erros aleatórios influenciando os resultados do ASPEN study na época não poderia ter sido ser descartada.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

AFCAPS/TexCAPS




AFCAPS/TexCAPS - O primeiro estudo a testar o benefício das estatinas em mulheres 






Sabe-se que existem evidências convincentes a respeito do benefício do uso de estatinas na redução dos níveis de colesterol e consequentemente da redução de eventos cardiovasculares e mortalidade.
Entretanto, assim como idosos de maneira geral constituem um grupo de pacientes subrrepresentados em ensaios clínicos, no que tange à presença de mulheres nos estudos com estatinas, elas são incluídas numa frequência bem menor se comparadas aos homens, na amostra de indivíduos estudados.

Nessa série, publicaremos os principais estudos relacionados ao tratamento das dislipidemias, sendo o clássico AFCAPS/TexCAPS, o primeiro estudo a testar o efeito anti-lipidêmico das estatinas na redução de eventos cardiovasculares em mulheres, sem doença cardiovascular manifesta, o alvo de nossa discussão.

Vamos a alguns detalhes...

Objetivos: O estudo objetivou avaliar o efeito da terapia a base de Lovastatina 20 - 40  mg vs Placebo em homens e mulheres sem evidência de DAC manifesta, portanto, um estudo de prevenção primária. Desse modo, foi desenhado um ensaio clínico randomizado com 5608 homens e 997 mulheres, duplo-cego, controlado por placebo -  o que evita, viéses de confusão e aferição do desfecho.

Critérios de Inclusão: homens entre 45 e 73 anos e mulheres entre 55 e 73 anos, sem doenças cardiovasculares prévias e que preenchessem os seguintes critérios de lipidograma: CT entre 180 e 264, LDL entre 130 e 190, HDL <45 em homens e <47 em mulheres, TG < 400.


Desfechos: Ao final de um segmento médio de 5,2  anos objetivou-se avaliar a ocorrência de um primeiro evento cardiovascular maior (MACE), denominado como IAM fatal ou não-fatal, morte súbita e angina instável.

Resultados: Observou-se uma redução de risco relativo de 37 %, na ocorrência de eventos cardiovasculares maiores no grupo tratado - foram cerca de 183 desfechos no grupo padrão vs 116 eventos no grupo tratado.



Conclusão: Conclui-se no estudo que uso de Lovastatina reduziu a ocorrência do primeiro evento cardiovascular tanto em homens quanto em mulheres, através da diminuição das taxas de LDL e aumento dos níveis de HDL.




Comentário a respeito da Metodologia e Aplicabilidade - 



O truncamento...




Inicialmente, do ponto de vista metodológico, embora AFCAPS/TexCAPS tenha sido um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, com conclusão com base em desfechos primários , este foi um estudo truncado.



Truncar um estudo significa interrompê-lo precocemente . O truncamento é interessante para indústria farmacêutica, pois além de garantir um resultado positivo,  gera economia  do ponto de vista financeiro.

Um estudo só pode ser truncado, quando durante o desenvolvimento da pesquisa, o tratamento utilizado esteja causando efeitos adversos na população estudada ou quando os dois grupos são tão idênticos que é improvável que a hipótese nula seja refutada.

Quando há truncamento do estudo, existe um grande risco de haver superestimativa do efeito da terapia. Ademais, não há garantia de que o efeito positivo da terapia não tenha sido decorrente do acaso, pois como o estudo foi interrompido precocemente, não permite-se que haja tempo do estudo se auto-corrigir ap longo do follow-up projetado.

O estudo acima foi projetado para detectar uma RRR (redução de risco relativo de 30 a 35%) , com cerca de 320 participantes experimentando um primeiro desfecho, entretanto foi interrompido com 267 desfechos.

Estudos sobre truncamento demonstram que os pares truncados em comparação com os não-truncados superestimam a RRR em até 29%. 
Nesse caso, acredito que o benefício demonstrado pelo estudo tenha sido verdadeiro, mas com uma  RRR menor. 

O uso de desfechos combinados...

O uso de desfechos combinados não representa um problema de múltiplas comparações, só existe uma análise estatística sendo feita, ele aumenta a confiabilidade do estudo, pois evita erros aleatórios, mas em contrapartida permite que possa ocorrer diminuição da relevância, pois desfechos mais importantes e menos importantes estão agrupados.

No estudo acima houve diminuição de eventos cardiovasculares às custas de IAM e angina instável de maneira quase que semelhante. (  95 vs 57 , RR 0,60  IC 0,43 - 0,83) , (87 vs 60 , RR 0,68 IC 0,49-0,95), uma redução interessante, mas às custa de um desfecho que não pode ser considerado duro.
Outro ponto é que o estudo não foi desenhado para testar redução de mortalidade, o desfecho mais importante.

Aplicabilidade...

Diferentemente dos outros trials este estudo além de ter incluído um número mais significativo de mulheres na amostra, permitindo fazer a inferência do benefício de estatinas nessa população, incluiu uma população com alto risco cardiovasculares, mas com taxas de colesterol mais próximas da normalidade. O CT médio foi de 221 , enquanto que o LDL médio foi de 150.

Ademais, muitos pacientes possuíam alto risco cardiovascular, decorrente da presença de comorbidades como HAS, DM e Tabagismo. 

O estudo assim, ao analisarmos as características de base dos indivíduos, de certa forma suporta a intervenção de que deve-se pensar no uso de estatinas em indivíduos com LDL entre 130 e 190, com risco cardiovascular mais elevado. De acordo com a últimas recomendações maior do que 7, 5%.  

O uso de metas...

Percebe-se que neste estudo, o LDL médio ao final do segmento foi cerca de 115 no grupo estatina, acima do que é recomendado como meta por muitas diretrizes para indivíduos diabéticos ,por exemplo, ou de alto risco. Denota-se que a busca por um alvo lipidêmico é questionável, pois os estudos não foram desenhados desta forma.