domingo, 25 de dezembro de 2016

MEGA Study

Sendo a hipercolesterolemia um importante fator de risco para as doenças cardiovasculares, iniciaremos uma série discutindo os principais ensaios clínicos tanto em prevenção primária quanto secundária para o tratamento da colesterolemia com uso de estatinas.

Nesse post, falaremos sobre o MEGA study.

Este trial teve como objetivo avaliar se 10 - 20 mg de pravastatina seriam efetivos para prevenção primária no âmbito da população Japonesa.

Características do estudo: 
Metodologicamente foi um ensaio clínico randomizado do tipo aberto, que envolveu 7832 com deita ou dieta + pravastatina na dose de 10 - 20 mg.

Utilizou como critérios de inclusão indivíduos homens e mulheres entre 40 e 70 anos e hipercolesterolemia entre 220 e 270 mg por dl. 
Quanto aos critérios de exclusão , por se tratar de um estudo de prevenção primária os indivíduos com história de AVC ou DAC foram excluídos, além daqueles com hipercolesterolemia familiar.

O colesterol médio era de 242 e o LDL médio de 156. Importante denotar que de acordo com as características basais dos pacientes, 42% eram hipertensos, 21% diabéticos e 20%  com passado ou eram tabagistas. 

O desfecho primário foi um composto da  morte por DAC através de equivalentes de DAC - incluindo IAM fatal e não-fatal, angina, morte súbita, e necessidade de revascularização miocárdica.


Veracidade

Temos aqui um estudo randomizado - o que evita viés de confusão, aberto, entretanto que utilizou desfechos duros, eliminando a possibilidade de viés de mensuração, com significância estatísticas na redução do desfecho primário às custa de IAM e diminuição das taxas de revascularização. Sem truncamento e realizado com a intenção de tratar ( o que evita viés de tratamento ). A conclusão do estudo foi tomada com base no desfecho primário.


Resultados e Relevância

No grupo tratamento houve uma diminuição das taxas de DAC , com Hazart Ratio ( densidade de incidência) de 0,67 IC 0.49 - 0.91: p = 0,01.

Analisando o desfecho primário pode-se constatar que houve diminuição das taxas de IAM em relação ao grupo que utilizou apenas dieta ,  com Hazart Ratio de 0,52 IC 0,29 - 0,94: p = 0,03. Houve diminuição também das taxas de revascularização com Hazart Ratio de 0,60 IC 0,41 - 0,89: p = 0,01.

Análise qualitativa do desfecho 

Nesse estudo, o desfecho primário foi um desfecho composto, ou seja, envolvendo uma gama de determinadas alterações: primeira manifestação de DAC - incluindo IAM fatal e não-fatal, angina, morte súbita, e necessidade de revascularização miocárdica. Nesse caso, quando o paciente apresenta um destes eventos, o indivíduo passa a ser rotulado como apresentador deste desfecho primário.

Lembrando que o desfecho composto não representa um problema de múltiplas comparações, pois  só há uma análise estatística  sendo feita. 
O uso de desfecho composto aumenta a confiabilidade de estudo em relação a erros aleatórios, entretanto, você pode diminuir a relevância, pois pode haver desfechos mais importantes e menos importantes agrupados.

Na tabela acima podemos conferir que houve redução significativa do desfecho primário às custas de IAM e diminuição das taxas de revascularização coronariana. 


Análise quantitativa - significância clínica

Calculando o NNT , temos:
NNT de morte por DAC - 119
NNT de morte por IAM - 225

Críticas e Aplicabilidade


Observa-se que a redução de mortalidade cardiovascular com uso de pravastatina nas doses apresentadas foi de pequena magnitude, abaixo de 100, de menor magnitude ainda quando consideramos apenas IAM.

A dose utilizada  foi de pequena intensidade, diferente das doses de 40 mg do clássico estudo WOSCOPS, o que nos faz questionar se uma redução de moderada intensidade nessa população com LDL médio menor do que 190, caso do WOSCOPS  não seria mais benéfica, com NNT de melhor impacto.

Ao calcularmos o risco cardiovascular do paciente médio deste trabalho através do ASCVD risk, pode-se perceber que embora sem história prévia de eventos cardiovasculares o risco destes seria elevado, estes poderiam ter mais benefício através do uso  de doses de moderada intensidade, como preconizado pela ultima diretriz da AHA.

Este estudo demonstra que o uso de estatinas em prevenção primária na população estudada é benéfico com redução de eventos cardiovasculares, ao extrapolarmos, utilizando  doses de potência moderada de estatinas poderíamos inferir também que a redução de eventos nessa população poderia ser maior. 





segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Epidemiologia Rápida - Uso das medidas de Incidência e Prevalência IV





O uso das Medidas de Prevalência

- Planejamento de ações e a administração de serviços de saúde.
A quantidade de casos de uma determinada doença ou problemas de saúde são  fatores que demandam por assistência médica. 
Por exemplo: Através da estimativa da taxa de prevalência de casos de HIV ou desnutrição infantil é possível prever a quantidade de recursos humanos e de insumos para o diagnóstico e tratamento, bem como, determinar a quantidade de leitos necessário para internação de casos mais complicados num determinado período de tempo.

- Estudos de Prevalência
A taxa de prevalência pode ser utilizada para descrever a frequência de ocorrência de uma determinada doença ao longo do tempo - uma fotografia do momento - contudo, como esta taxa é função tanto da incidência como da duração de um doença ao longo do tempo, ela não é muito indicada para investigações de caráter etiológico. 
Além disso, nos estudos de prevalência não é possível determinar relação de causa-efeito.

-Avaliação diagnóstica e terapêutica
Os valores preditivos de um teste diagnóstico dependem essencialmente de três fatores: sensibilidade, especifidade e prevalência. Em opções terapêuticas, principalmente  a nível populacional, necessitamos da taxa de prevalência e informações sobre o risco associado ao tratamento.

O uso das medidas de Incidência

-Associação entre uma doença e fatores de risco
Como mencionado acima a taxa de prevalência é uma função tanto da incidência como da duração de uma determinada doença, por isso não é adequada para estimar risco. Por exemplo, uma prevalência elevada pode estar indicando uma doença crônica e não uma situação de alto risco. 
Já a incidência, representada pela incidência cumulativa nos fornece uma boa estimativa da probabilidade de um indivíduo desenvolver uma determinada condição ao longo do tempo, sendo uma boa preditora de risco. Dessa forma, a incidência pode ser utilizada em estudos que avaliem a associação entre um determinada doença e fatores de risco.
Ex: Estudos de coorte.

Em resumo:

As taxas de incidência e prevalência são medidas de frequência muito importantes e devido a suas diferenças devem ser utilizadas nas situações onde melhor se aplicam.
A taxa de incidência é uma medida mais dinâmica e expressa melhor o conceito de risco de desenvolvimento de uma doença. Enquanto que, a taxa de prevalência é uma medida estática e expressa melhor a situação do momento da determinada condição em estudo, por exemplo, pode ser aplicada em estudos transversais.




quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Epidemiologia Rápida - Fatores que alteram a taxa de Prevalência III

Nesse post,  será feita uma rápida abordagem sobre os fatores que alteram as taxas de prevalência, levando ao aumento das taxas ou a diminuição.


Fatores que aumentam as taxas de prevalência
  • Maior duração da doença
  • Aumento da incidência
  • Aumento das taxas de sobrevida de uma doença, sem cura
  • Melhoria dos métodos diagnósticos
  • Melhoria dos sistemas de informação
  • Imigração de casos de uma  determinada patologia  ou emigração de indivíduos sadios
Fatores que diminuem as taxas de prevalência
  • Imigração de pessoas sadias ou emigração de casos
  • Diminuição das taxas de incidência
  • Maior letalidade de uma patologia X
  • Aumento das taxas de cura de uma determina doença
  • Menor duração da doença 




segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Epidemiologia Rápida - A relação entre Prevalência e Incidência II


Em postagem anterior definimos os conceito de Prevalência e Incidência. Duas medidas de frequência fundamentais para quantificação da frequência com que os problemas de saúde ocorrem, contudo existe uma intima relação entre os dois conceitos que deve ser mencionada.

 A proporção de indivíduos afetados por uma doença em dado momento (prevalência) depende do surgimento de novos casos ( incidência) em função do tempo e da duração dessa doença desde o seu início, determinando a cura ou morte.
Portanto, para uma doença de baixa incidência mas que tenha longa ou demorada resolução, a prevalência será mais alta que a incidência.
Se a incidência de uma doença for alta, mas que tenha um curso curto ou rápido , as taxas de incidência geralmente são próximas as de prevalência.

Quando lidamos com doenças infecciosas agudas , geralmente as taxas de incidência e prevalência são similares, e de maneira geral nas doenças crônicas , as taxas de incidência são menores que a de prevalência.

Considerando este raciocínio é possível relacionar a prevalência com a incidência a partir da seguinte fórmula.

Prevalência = Incidência x Duração da doença





segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Epidemiologia Rápida - Medidas de Frequência I



O que são medidas de frequência?

Independente da sofisticação de um estudo epidemiológico ou da análise de dados empregados, as respostas destes, baseiam-se em alguma medida de frequência - As medidas de frequência  nada mais são do que a representação de maneiras de medir ou quantificar a frequência com que os problemas de saúde ocorrem, em uma população humana, assim , elas são definidas a partir de dois conceitos epidemiológicos fundamentais, denominados: prevalência e incidência .

Prevalência

A prevalência é definida como a frequência de casos existentes de uma determinada doença, de uma dada população, em um certo momento. Os casos prevalentes são aqueles indivíduos que vieram a adoecer e que estão vivos quando realizou-se a observação. Assim, os casos que vieram a falecer antes do período de observação não são considerados como prevalência.

Prevalência = número de casos existentes/ população total  num dado momento do tempo

Incidência

É a frequência de casos novos de uma determinada doença, originados em uma população sob risco de adoecimento, ao longo do tempo.  É uma medida dinâmica, pois refere-se a uma mudança no "status" de saúde do indivíduo, verificado através de mais de uma observação ao longo do tempo.

Incidência = número de casos novos/população em risco num dado momento do tempo

Tanto as medidas de prevalência como a de incidência podem ser definidas como indicadores de morbidade. Enquanto a prevalência demonstra uma fotografia da situação em um dado momento, a medida de incidência pode ser melhor utilizada para avaliar o risco de  adoecer por determinado agravo, também conhecida como incidência acumulada.





domingo, 7 de agosto de 2016

Controle da HAS em Diabéticos. ACCORD trial, como avaliar estudos negativos.




Dando continuidade a série de postagens relacionadas ao paradigma do "Less is More" ou " Menos é Mais " e pegando carona nos últimos resultados do SPRINT-trial, que concluiu que para  indivíduos com alto risco cardiovascular, sem diabetes ou AVC prévio o controle agressivo (More is More) seria a  melhor medida terapêutica para redução de desfechos duros em indivíduos hipertensos, hoje falaremos sobre o controle da pressão arterial em indivíduos com HAS e diabetes, esmiuçando os aspectos do principal estudo que embasa essa recomendação - o ( ACCORD-trial).

Background - Racional do Estudo - Não há evidências para afirmar que uma pressão arterial sistólica menor que 135 mm Hg (tratamento agressivo) reduz um maior número de desfechos  duros em indivíduos com HAS e DM , portanto o estudo foi desenhado para testar a hipótese de que uma pressão arterial sistólica menor que 120 mm Hg  poderia ser mais benéfica de que o tratamento padrão.

Resultados
As médias de controle pressórico nos grupos tratamento intensivo e tratamento padrão após um ano de estudo foram, respectivamente de: 119,3 e 133,5.
As taxas anuais dos desfechos primários foram de 1,87% no grupo tratamento intensivo e 2,09% no grupo padrão ( 0,88 IC 95% 073-1,06 p=0,20).
As taxas anuais de morte por qualquer causa foram de respectivamente, 1,19% e 1,28%, não alcançando diferença significativa ( 1,07 IC 95% 085-1,35 p=0,55).
Houve diferenças nas taxas anuais de AVCi , sendo significativas entre grupo tratamento x padrão (p=0,001) - porém, o desfecho foi secundário.
E o número de eventos adversos foi maior no grupo tratamento intensivo 77 de 2632 pacientes contra 30 de 2371.

Conclusão

Em indivíduos com DM de alto risco cardiovascular uma pressão arterial sistólica menor do que 120 mm Hg não reduziu eventos cardiovasculares maiores fatais e não fatais se comparada com taxas inferiores de PAS a 140 mm Hg.

Análise do estudo ACCORD-trial.

O que pode influenciar nos resultados de um estudo falso-negativo? 

1 - Erros sistemáticos
2 - Erros aleatórios


1 - Em relação aos erros sistemáticos, teríamos que nos questionar que erros no planejamento e na intervenção poderiam influenciar nos resultados do estudo.

A intervenção em ambos os grupos foi adequada. No grupo tratamento padrão a titulação ou adição de drogas foi realizada se a PAS era igual ou superior a 160 mm Hg em uma única visita ou igual ou superior a 140 mm Hg em duas visitas consecutivas. A titulação reajustando as doses para níveis mais baixos era realizado se a PAS era menor ou inferior a 135 em unica visita ou menor ou inferior a 130 em duas visitas.

No grupo tratamento intensivo foi definido que a titulação de doses ou adição de medicamentos ocorreria se a PAS estivesse maior ou igual a 120.
Como medicamentos foram utilizadas todas as classes medicamentosas disponíveis para o tratamento de indivíduos com HAS - Beta-bloqueadores, diuréticos, inibidores da ECA, bloqueadores dos receptores de angiotensina, bloqueadores dos canais de cálcio e, para aqueles candidatos ao tratamento intensivo o tratamento inicial foi realizado através das custas de um diurético adicionado a IECA ou BB , se necessário.

Quanto ao tipo de desfecho?
Os desfechos avaliados foram todos duros. Para o desfecho primário foi definido um composto de morte cardiovascular associado a AVC não-fatal e IAM não-fatal.
Embora, o estudo tenha sido aberto, a preocupação com viéses de mensuração diminui pela utilização de desfechos objetivos que não são suscetíveis a tendenciosidade do observador.
As definições adequadas dos desfechos podem ser encontradas no  material suplementar.

Sobre erros sistemáticos, devemos nos perguntar sobre os viéses de confusão. Neste caso,  o ( ACCORD-trial) foi um estudo randomizado, ou seja, através de alocação aleatória - sorteio, definiu-se grupo controle e grupo intervenção. Diferentemente dos estudos observacionais, onde os grupos são pré-definidos, o que faz com que as características dos indivíduos não sejam homogêneas, a randomização torna os grupos iguais, evitando viéses de seleção e confusão. Isto pode ser visto  na Tabela 1, onde o número de indivíduos em cada grupo e suas características é muito semelhante.


O Acaso

Quando um estudo é negativo devemos nos perguntar se a diferença não foi encontrada devido ao erro do tipo II. O erro do tipo II ocorre quando uma hipótese foi rejeitada sendo verdadeira, e isto não ocorreu devido a falta de poder estatístico.
Nota: Em estatística quando realizamos o teste de hipóteses e ele  parte da premissa da hipótese nula, ou seja, um fenômeno é inexistente até que prove-se o contrário. A partir disso, quatro possibilidades existem, vistas abaixo.








Voltando ao erro do tipo II, um estudo quando realizado, deve ter um poder estatístico de no mínimo 80%, logo, o limite de tolerância para o erro do tipo II é de 20%. Quando analisamos um estudo negativo devemos procurar por estes dados. Estes dados geralmente estão dispostos em Statistical Analysis. No estudo citado observamos que o autor propõe um número amostral de 4200 participantes para um poder estatístico de 94% que seria suficiente para detectar uma diferença ( se houvesse) entre os grupos.
Nesse caso, o  ( ACCORD-trial) teve um poder adequado.

Outro ponto importante a analisar é a diferença de desfecho que o autor propõe encontrar. Quanto menor a diferença maior deve ser o poder do estudo.
Nesse estudo há a proposta de uma Redução relativa de 20% nas taxas do desfecho primário no grupo submetido ao tratamento intensivo com a incidência no grupo controle de 4% ano , para um follow-up de 5,6 anos.
Ademais, devemos avaliar se essa incidência foi realmente demonstrada no grupo controle. No estudo ( ACCORD-trial) a incidência anual do desfecho no grupo controle foi 50% menor do que o planejado, o que de certa forma reduz o poder estatístico do estudo. Esperava-se uma incidência de 4% ao ano, quando foi encontrada uma taxa de 2,09% ao ano. A justificativa dos autores foi de que o uso de estatinas em pacientes que foram provenientes do braço lípidico do estudo proporcionaram uma diminuição do risco cardiovascular aquém daquele estritamente relacionado ao aumento da pressão arterial.
Entretanto, ainda assim, ao analisar as incidências cumulativas entre os desfechos verifica-se que as curvas são muito próximas entre elas. Ocorrendo apenas diferença no quadro B, um desfecho secundário.
O erro do tipo II é mais provável, quando há uma diferença que não alcançou significância.


Aplicabilidade

Este estudo embasa uma das principais recomendações do JOINT-8, de que o tratamento moderado da pressão arterial em diabéticos seria suficiente para prevenir eventos cardiovasculares maiores, contra-pondo as recomendações do JOINT-7 de que o tratamento agressivo seria mais eficiente.
O estudo também demonstra que a média das medicações para se obter um controle agressivo num grupo de tratamento intensivo seria significativamente maior. No grupo de tratamento intensivo foi necessário uma média  de 3,4 medicamentos, enquanto que no grupo padrão apenas 2,1.
Aumentar o número de medicações também aumenta a possibilidade de eventos adversos, onde se observa uma maior taxa de distúrbios hidroletrolíticos e outros eventos adversos no grupo de tratamento agressivo em comparação ao grupo controle.
Outro ponto a ressaltar, é que o estudo avaliou indivíduos de 40 a 79 anos, devendo-se tomar cuidado a extrapolar para grupos além dessa idade sem diabetes.
De maneira geral, observando-se as médias de pressão entre os grupos no final do segmento, o ( ACCORD-trial) foi mais adequado, pois no analise de sub grupos do HOT-trial e UKPDS as médias pressóricas nos grupos foram maiores. O que o coloca como a evidência de melhor qualidade para embasar a conduta referente ao controle pressórico nos diabéticos.










segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Bacteriúria Assintomática.Menos pode ser mais (Less is More)

" A simplicidade é o último grau de sofisticação". Leonardo da Vinci


Existem determinadas condições patológicas que dispensam cuidados de abordagem médica mais especializada, o manejo da hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes mellito (DM), infecções de via aérea superior (IVAS), pneumonias não-complicadas, artroses, infecções agudas do trato urinário (ITU) e etc, fazem parte do rol de condições patológicas que o médico generalista deve ter a obrigação de saber manejar. Dentre essas condições, a infecção do trato urinário sempre despertou  minha curiosidade, principalmente  quanto aos aspectos de seu fácil manejo (quando não-complicada) e sua fisiopatologia bastante mecanística.


Recentemente, um artigo publicado  na revista da sociedade americana de doenças infecciosas denominado Assynptomatyc Bacteriúria Treatment is Associated with a Higher Prevalence of Antibiotic Resistant Strain in Women With Urinary Tract Infections, chamou minha atenção novamente para o tema. Na verdade, o artigo mencionado despertou uma reflexão além de dados estatísticos e das conclusões suportadas por esta elegante evidência.
De certa forma, por mais simples que o manejo de uma patologia possa ser, quando não o fazemos de maneira adequada, os reflexos de nossa conduta podem ter " efeitos adversos" que a priori podem não ser tão perceptíveis, contudo podem ser extremamente prejudiciais.
E, nesse caso, a expressão supracitada como  " simples manejo" ou "simplicidade" veio logo a minha cabeça, pois a ITU na forma de bacteriúria assintomática está relacionada a um quase onipresente paradigma: O paradigma do " Less is More" -  chamado também de "quanto menos melhor", ou  de "o bom é inimigo do ótimo".
Este paradigma , está presente de forma muito frequente em nossas vidas. Hanna Arendt, no livro A condição humana, relata que esta maneira de pensar tomou forma graças ao modo de vida dos franceses, que consideravam que a maravilha da vida estava na simplicidade dos atos. Leonardo da Vinci,  na renascença, já considerava que a simplicidade era o último grau de sofisticação, conquanto este paradigma estendeu-se além da vida social e passou a nortear a maioria das condutas médicas, devido a comprovação com base em evidências que contrariam pensamentos mecanísticos. E por que pensamentos mecanísticos? 

A comunidade médica costuma propor que terapias agressivas tendem a ser mais benéficas, pois nestas circunstâncias o benefício seria diretamente proporcional a intensidade do tratamento, porém, do ponto de vista da plausibilidade biológica, este benefício seria diluído pela possibilidade maior de eventos adversos.
De maneira geral, as evidências demonstram que a magnitude do efeito de uma terapia intensiva quando benéfica é sempre de pequena magnitude. Estão com dúvidas? Consultem o recente SPRINT-TRIAL e calculem o NNT do tratamento agressivo para desfechos duros.
Quando comparamos tratamento usual x tratamento intensivo, as evidências apontam que o paradigma do "less is more" prevalece na maioria dos casos; não é novidade que pedir exames desnecessários pode elevar o risco de overdiagnosis, também não é novidade que tratar agressivamente a pressão em diabéticos não demonstra diferença significativa para o tratamento usual quando fala-se em hard endpoints (ACCORD trial ) , ou mesmo controlar a glicemia agressivamente em diabéticos crônicos não acarreta em diminuição de desfechos duros, porém traz o desconfortável risco da hipoglicemia (ACCORD 2011), só para citar alguns exemplos...



E, onde inicia-se a história da bacteriúria?

Do ponto vista microbiológico, a bacteriúria é considerada positiva quando encontra-se numa amostra de urina a partir de um jato médio adequadamente coletado, uma quantidade maior ou igual a 100.000 colônias de bactérias em uma amostra para homens e duas amostras seguidas para mulheres. Em indivíduos utilizando cateteres essa concentração de bactérias diminui para 102
Para o diagnóstico de bacteriúria assintomática, além dessas características em cada grupo determinado, o paciente não deve apresentar sinais e sintomas sugestivos de ITU ( disúria, nictúria, urgência miccional, dor suprapúbica e etc.)
Há um bom tempo, o screening e o tratamento da bacteriúria tem sido recomendados em certos grupos de pacientes,e quais são esses grupos?
1 - Gestantes
2 - Pacientes que serão submetidos a procedimentos urológicos
3 - Pacientes que serão submetidos a cirurgia de quadril
4 - Pós-transplante renal ou terapêutico

Por exemplo, este excelente guideline , através de informações provenientes dos mais diversos tipos de estudos, dentre eles, clinical trials controlados por placebo, recomenda o tratamento da bacteriúria assintomática em gestantes, pois de acordo com evidências de boa qualidade, houve considerável diminuição do risco de pielonefrite e parto prematuro. No grupo não tratado, além disso, foi observado através destes estudos que os recém-nascidos apresentaram mais baixo peso ao nascer.

Da mesma forma, o guideline faz  ressalvas para os grupos citados anteriormente. No início do guideline, há um resumo bastante claro de todas as recomendações. A recomendação para procedimentos urológicos chegam a ser de nível A-1, são recomendações fortes, em que claramente os benefícios superam os riscos e que demonstram diferenças significativas na realização do tratamento em relação ao grupo não tratado para essas condições.

E, quais seriam os grupos onde o rastreio e o tratamento seria contra-indicado?

1 - Mulher pré-menopausa, não gravida (A-I)
2 - Diabéticos (A-I)
3 - Idosos vivendo na comunidade (A-II)
4 - Idosos institucionalizados (A-I)
5 - Indivíduos com lesão da medula espinal (A-II)
6 - Indivíduos cateterizados (A-I)

Diabéticos + bacteriúria assintomática + tratamento = Less is More

Há uma série de evidências que demonstram que o princípio do " Less is More " prevalece no grupo de pacientes diabéticos. Acima já citamos duas. Corroborando ainda mais com esses dados, no que tange ao rastreio da bacteriúria assintomática e tratamento desta mesma condição, esta evidência de boa qualidade publicada NEJM, conclui que o tratamento em diabéticos com bacteriúria assintomática não parece reduzir os desfechos propostos e devido a isto o rastreio nesses pacientes não deveria ser realizado. O tratamento com antibióticos deveria ser direcionado aos casos sintomáticos de ITU.


Analisando os desfechos, pode-se perceber que não houve diferença significativa entre os episódios de cistite, pielonefrite e um desfecho combinado de todos os episódios anteriores.


Ao analisarmos a conclusão do artigo, pode-se perceber que este foi feito de acordo com os desfechos primários elencados pelo estudo que foram: o tempo da primeira infecção do trato urinário e a frequência de de infecções do trato urinário, isto diminui a possibilidade dos resultados terem sido decorrentes do acaso, porque evita o problema das múltiplas comparações.

De acordo com a curva de Kaplan-Meier pode-se observar que não houve diferenças entre o tempo da primeira infecção de trato urinário entre os grupos. (p=0,67)



O tratamento da bacteriúria assintomática e a história do aumento de cepas resistentes aos antibióticos

Em relação a bacteriúria assintomática já sabemos quais grupos devem ser tratados e em quais o grupos deve prevalecer o princípio do " menos é mais" . Na verdade, a esta altura da postagem acredito que o leitor já deva ter percebido a importância e o conhecimento deste paradigma. Todavia, no princípio do post, discorro sobre a evidência que despertou este momento de reflexão. No início, mencionei que talvez condutas aparentemente não tão impactantes no simples manejo de um caso assintomático poderiam ter efeitos adversos que  a priori seriam insipientes e imperceptíveis. Na medicina isto acontece a todo momento. Já se esqueceram dos casos de overdiagnosis devido a pesquisa de doença coronariana oculta em paciente assintomático?
Pois bem,  o principal efeito colateral do tratamento da AB em grupos inadequados é a resistência antibiótica e foi isto que este estudo demonstrou. Algo meio óbvio? Parece que não, pois essa conduta parece ser recorrente...

Ao seguir ( follow-up) de maneira  analítica e longitudinal, uma população de 550 mulheres com bacteriúria assintomática previamente randomizada este estudo com objetivo de verificar o impacto do tratamento da AB em mulheres jovens ( a média de idade entre os grupos era de 38 anos, como verifica-se na Tabela 1) verificou que:
1 - Houve uma diferença significativa entre as taxas de recorrência (p=0,03) entre o grupo não tratado e tratado. A taxa de recorrência no grupo não tratado foi de 37,7%, enquanto que no outro cerca de 69%.
2 - As cepas de E.coli, isoladas no grupo ofereceram resistência ao uso de Amoxicilina + clavulanato, Bactrin e Ciprofloxacino. Todas, opções bastante utilizadas. A resistência ao uso de Bactrin não me surpreendeu, porque sabemos que em alguns locais essa taxa de resistência já chega a mais de 20% e quando isso ocorre outras opções de ATB para o tratamento de ITU são indicadas.


A análise crítica

Quando nos deparamos com um artigo, devemos fazer questionamentos referentes as verdades dos fatos:

1 - Esta evidência é verdadeira?
A verdade de uma evidência depende de erros aleatórios e sistemáticos. Fazendo um check-list e procurando o valor de p=0,03, percebe-se que a probabilidade destes resultados serem decorrentes do acaso é baixa, 3% - portanto o acaso foi desprezado. Ao buscar por erros sistemáticos, verifica-se que a população envolveu indivíduos que foram previamente randomizados e pareados em grupos paralelos. Ao analisar a tabela 1, pode-se verificar também que os grupos são semelhantes em suas características, afastando a possibilidade de viés de confusão. 
Aparentemente, não houve cegamento dos pesquisadores e dos indivíduos da pesquisa, entretanto, penso que a possibilidade de viés de aferição tenha sido afastada pelo maneira com que os desfechos foram definidos, todos adequadamente, e pelo fato de que a mensuração do perfil de resistências(desfecho primário) das cepas tenha sido feita no mesmo laboratório. Portanto, esta evidência é verdadeira.

2 - Esta evidência é relevante?
Significância clínica é diferente de significância estatística. 
Perceba que houve um diferença grande nas taxas de recorrência motivada pelo tratamento desnecessário de AB - 37 vs 69% no grupo tratado, além disso , quanto a pergunta do artigo: a diferença foi significante quanto a presença de resistência aos antibióticos mencionados no grupo B(TRATADO), o que  impacta na conduta terapêutica.

3 - Quanto a aplicabilidade - Este resultado é aplicável a nossa realidade?
Acho que os resultados deste estudo, de acordo com seu objetivo primário, se aplicam muito bem a qualquer questão que o envolva o manejo racional do uso de antibióticos. Talvez, o perfil de resistência varie de comunidade para comunidade, mas a resistência está ali. Ademais, grande parte das cepas isoladas entre os grupos foram de E.coli, a bactérias mais comum nos casos de ITU, o que nos dá suporte para extrapolarmos estes resultados para outros locais. 
O estudo argumenta que uma de suas limitações foi o fato de que os pacientes envolvidos eram pacientes da comunidade atendidos em serviços de urologia, e que não há como afirmar o efeito do tratamento da AB na resistência ao uso de ATB em outras populações. Pode ser, mas penso que o paciente tipico deste estudo com bacteriúria assintomática, seria uma mulher jovem e com determinadas características que não devam alterar essa diferença caso o estudo selecionasse mulheres que frequentaram outros serviços médicos. Provavelmente a prevalência seria diferente da população geral, mas acho que esta seleção não teria acarretado em resultados espúrios. O perfil de resistência seria diferente em ambiente in-patient. Um fator que me chamou atenção foi o fato das pacientes terem sido submetidos a múltiplos ciclos de antiobiótico terapia, este sim, um fator que poderia acarretar em outros resultados. Isto porque um dos fatores que levam a resistência está relacionado ao uso excessivo do ATB, portanto a pegunta que ficaria seria de qual seria esse perfil em mulheres tratadas mas submetidas a menos ciclos?

De qualquer forma esta é uma evidência que responde a nossa questão. Negligenciar o princípio do " Less is More" quando este é evidente, acarreta em mais transtornos do que benefícios. A pesquisa pela busca de novos antibióticos já é escassa, portanto seu manejo racional  através de condutas simples é fundamental. Quais seriam os impactos de uma era pré-antibiótica?