segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Bacteriúria Assintomática.Menos pode ser mais (Less is More)

" A simplicidade é o último grau de sofisticação". Leonardo da Vinci


Existem determinadas condições patológicas que dispensam cuidados de abordagem médica mais especializada, o manejo da hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes mellito (DM), infecções de via aérea superior (IVAS), pneumonias não-complicadas, artroses, infecções agudas do trato urinário (ITU) e etc, fazem parte do rol de condições patológicas que o médico generalista deve ter a obrigação de saber manejar. Dentre essas condições, a infecção do trato urinário sempre despertou  minha curiosidade, principalmente  quanto aos aspectos de seu fácil manejo (quando não-complicada) e sua fisiopatologia bastante mecanística.


Recentemente, um artigo publicado  na revista da sociedade americana de doenças infecciosas denominado Assynptomatyc Bacteriúria Treatment is Associated with a Higher Prevalence of Antibiotic Resistant Strain in Women With Urinary Tract Infections, chamou minha atenção novamente para o tema. Na verdade, o artigo mencionado despertou uma reflexão além de dados estatísticos e das conclusões suportadas por esta elegante evidência.
De certa forma, por mais simples que o manejo de uma patologia possa ser, quando não o fazemos de maneira adequada, os reflexos de nossa conduta podem ter " efeitos adversos" que a priori podem não ser tão perceptíveis, contudo podem ser extremamente prejudiciais.
E, nesse caso, a expressão supracitada como  " simples manejo" ou "simplicidade" veio logo a minha cabeça, pois a ITU na forma de bacteriúria assintomática está relacionada a um quase onipresente paradigma: O paradigma do " Less is More" -  chamado também de "quanto menos melhor", ou  de "o bom é inimigo do ótimo".
Este paradigma , está presente de forma muito frequente em nossas vidas. Hanna Arendt, no livro A condição humana, relata que esta maneira de pensar tomou forma graças ao modo de vida dos franceses, que consideravam que a maravilha da vida estava na simplicidade dos atos. Leonardo da Vinci,  na renascença, já considerava que a simplicidade era o último grau de sofisticação, conquanto este paradigma estendeu-se além da vida social e passou a nortear a maioria das condutas médicas, devido a comprovação com base em evidências que contrariam pensamentos mecanísticos. E por que pensamentos mecanísticos? 

A comunidade médica costuma propor que terapias agressivas tendem a ser mais benéficas, pois nestas circunstâncias o benefício seria diretamente proporcional a intensidade do tratamento, porém, do ponto de vista da plausibilidade biológica, este benefício seria diluído pela possibilidade maior de eventos adversos.
De maneira geral, as evidências demonstram que a magnitude do efeito de uma terapia intensiva quando benéfica é sempre de pequena magnitude. Estão com dúvidas? Consultem o recente SPRINT-TRIAL e calculem o NNT do tratamento agressivo para desfechos duros.
Quando comparamos tratamento usual x tratamento intensivo, as evidências apontam que o paradigma do "less is more" prevalece na maioria dos casos; não é novidade que pedir exames desnecessários pode elevar o risco de overdiagnosis, também não é novidade que tratar agressivamente a pressão em diabéticos não demonstra diferença significativa para o tratamento usual quando fala-se em hard endpoints (ACCORD trial ) , ou mesmo controlar a glicemia agressivamente em diabéticos crônicos não acarreta em diminuição de desfechos duros, porém traz o desconfortável risco da hipoglicemia (ACCORD 2011), só para citar alguns exemplos...



E, onde inicia-se a história da bacteriúria?

Do ponto vista microbiológico, a bacteriúria é considerada positiva quando encontra-se numa amostra de urina a partir de um jato médio adequadamente coletado, uma quantidade maior ou igual a 100.000 colônias de bactérias em uma amostra para homens e duas amostras seguidas para mulheres. Em indivíduos utilizando cateteres essa concentração de bactérias diminui para 102
Para o diagnóstico de bacteriúria assintomática, além dessas características em cada grupo determinado, o paciente não deve apresentar sinais e sintomas sugestivos de ITU ( disúria, nictúria, urgência miccional, dor suprapúbica e etc.)
Há um bom tempo, o screening e o tratamento da bacteriúria tem sido recomendados em certos grupos de pacientes,e quais são esses grupos?
1 - Gestantes
2 - Pacientes que serão submetidos a procedimentos urológicos
3 - Pacientes que serão submetidos a cirurgia de quadril
4 - Pós-transplante renal ou terapêutico

Por exemplo, este excelente guideline , através de informações provenientes dos mais diversos tipos de estudos, dentre eles, clinical trials controlados por placebo, recomenda o tratamento da bacteriúria assintomática em gestantes, pois de acordo com evidências de boa qualidade, houve considerável diminuição do risco de pielonefrite e parto prematuro. No grupo não tratado, além disso, foi observado através destes estudos que os recém-nascidos apresentaram mais baixo peso ao nascer.

Da mesma forma, o guideline faz  ressalvas para os grupos citados anteriormente. No início do guideline, há um resumo bastante claro de todas as recomendações. A recomendação para procedimentos urológicos chegam a ser de nível A-1, são recomendações fortes, em que claramente os benefícios superam os riscos e que demonstram diferenças significativas na realização do tratamento em relação ao grupo não tratado para essas condições.

E, quais seriam os grupos onde o rastreio e o tratamento seria contra-indicado?

1 - Mulher pré-menopausa, não gravida (A-I)
2 - Diabéticos (A-I)
3 - Idosos vivendo na comunidade (A-II)
4 - Idosos institucionalizados (A-I)
5 - Indivíduos com lesão da medula espinal (A-II)
6 - Indivíduos cateterizados (A-I)

Diabéticos + bacteriúria assintomática + tratamento = Less is More

Há uma série de evidências que demonstram que o princípio do " Less is More " prevalece no grupo de pacientes diabéticos. Acima já citamos duas. Corroborando ainda mais com esses dados, no que tange ao rastreio da bacteriúria assintomática e tratamento desta mesma condição, esta evidência de boa qualidade publicada NEJM, conclui que o tratamento em diabéticos com bacteriúria assintomática não parece reduzir os desfechos propostos e devido a isto o rastreio nesses pacientes não deveria ser realizado. O tratamento com antibióticos deveria ser direcionado aos casos sintomáticos de ITU.


Analisando os desfechos, pode-se perceber que não houve diferença significativa entre os episódios de cistite, pielonefrite e um desfecho combinado de todos os episódios anteriores.


Ao analisarmos a conclusão do artigo, pode-se perceber que este foi feito de acordo com os desfechos primários elencados pelo estudo que foram: o tempo da primeira infecção do trato urinário e a frequência de de infecções do trato urinário, isto diminui a possibilidade dos resultados terem sido decorrentes do acaso, porque evita o problema das múltiplas comparações.

De acordo com a curva de Kaplan-Meier pode-se observar que não houve diferenças entre o tempo da primeira infecção de trato urinário entre os grupos. (p=0,67)



O tratamento da bacteriúria assintomática e a história do aumento de cepas resistentes aos antibióticos

Em relação a bacteriúria assintomática já sabemos quais grupos devem ser tratados e em quais o grupos deve prevalecer o princípio do " menos é mais" . Na verdade, a esta altura da postagem acredito que o leitor já deva ter percebido a importância e o conhecimento deste paradigma. Todavia, no princípio do post, discorro sobre a evidência que despertou este momento de reflexão. No início, mencionei que talvez condutas aparentemente não tão impactantes no simples manejo de um caso assintomático poderiam ter efeitos adversos que  a priori seriam insipientes e imperceptíveis. Na medicina isto acontece a todo momento. Já se esqueceram dos casos de overdiagnosis devido a pesquisa de doença coronariana oculta em paciente assintomático?
Pois bem,  o principal efeito colateral do tratamento da AB em grupos inadequados é a resistência antibiótica e foi isto que este estudo demonstrou. Algo meio óbvio? Parece que não, pois essa conduta parece ser recorrente...

Ao seguir ( follow-up) de maneira  analítica e longitudinal, uma população de 550 mulheres com bacteriúria assintomática previamente randomizada este estudo com objetivo de verificar o impacto do tratamento da AB em mulheres jovens ( a média de idade entre os grupos era de 38 anos, como verifica-se na Tabela 1) verificou que:
1 - Houve uma diferença significativa entre as taxas de recorrência (p=0,03) entre o grupo não tratado e tratado. A taxa de recorrência no grupo não tratado foi de 37,7%, enquanto que no outro cerca de 69%.
2 - As cepas de E.coli, isoladas no grupo ofereceram resistência ao uso de Amoxicilina + clavulanato, Bactrin e Ciprofloxacino. Todas, opções bastante utilizadas. A resistência ao uso de Bactrin não me surpreendeu, porque sabemos que em alguns locais essa taxa de resistência já chega a mais de 20% e quando isso ocorre outras opções de ATB para o tratamento de ITU são indicadas.


A análise crítica

Quando nos deparamos com um artigo, devemos fazer questionamentos referentes as verdades dos fatos:

1 - Esta evidência é verdadeira?
A verdade de uma evidência depende de erros aleatórios e sistemáticos. Fazendo um check-list e procurando o valor de p=0,03, percebe-se que a probabilidade destes resultados serem decorrentes do acaso é baixa, 3% - portanto o acaso foi desprezado. Ao buscar por erros sistemáticos, verifica-se que a população envolveu indivíduos que foram previamente randomizados e pareados em grupos paralelos. Ao analisar a tabela 1, pode-se verificar também que os grupos são semelhantes em suas características, afastando a possibilidade de viés de confusão. 
Aparentemente, não houve cegamento dos pesquisadores e dos indivíduos da pesquisa, entretanto, penso que a possibilidade de viés de aferição tenha sido afastada pelo maneira com que os desfechos foram definidos, todos adequadamente, e pelo fato de que a mensuração do perfil de resistências(desfecho primário) das cepas tenha sido feita no mesmo laboratório. Portanto, esta evidência é verdadeira.

2 - Esta evidência é relevante?
Significância clínica é diferente de significância estatística. 
Perceba que houve um diferença grande nas taxas de recorrência motivada pelo tratamento desnecessário de AB - 37 vs 69% no grupo tratado, além disso , quanto a pergunta do artigo: a diferença foi significante quanto a presença de resistência aos antibióticos mencionados no grupo B(TRATADO), o que  impacta na conduta terapêutica.

3 - Quanto a aplicabilidade - Este resultado é aplicável a nossa realidade?
Acho que os resultados deste estudo, de acordo com seu objetivo primário, se aplicam muito bem a qualquer questão que o envolva o manejo racional do uso de antibióticos. Talvez, o perfil de resistência varie de comunidade para comunidade, mas a resistência está ali. Ademais, grande parte das cepas isoladas entre os grupos foram de E.coli, a bactérias mais comum nos casos de ITU, o que nos dá suporte para extrapolarmos estes resultados para outros locais. 
O estudo argumenta que uma de suas limitações foi o fato de que os pacientes envolvidos eram pacientes da comunidade atendidos em serviços de urologia, e que não há como afirmar o efeito do tratamento da AB na resistência ao uso de ATB em outras populações. Pode ser, mas penso que o paciente tipico deste estudo com bacteriúria assintomática, seria uma mulher jovem e com determinadas características que não devam alterar essa diferença caso o estudo selecionasse mulheres que frequentaram outros serviços médicos. Provavelmente a prevalência seria diferente da população geral, mas acho que esta seleção não teria acarretado em resultados espúrios. O perfil de resistência seria diferente em ambiente in-patient. Um fator que me chamou atenção foi o fato das pacientes terem sido submetidos a múltiplos ciclos de antiobiótico terapia, este sim, um fator que poderia acarretar em outros resultados. Isto porque um dos fatores que levam a resistência está relacionado ao uso excessivo do ATB, portanto a pegunta que ficaria seria de qual seria esse perfil em mulheres tratadas mas submetidas a menos ciclos?

De qualquer forma esta é uma evidência que responde a nossa questão. Negligenciar o princípio do " Less is More" quando este é evidente, acarreta em mais transtornos do que benefícios. A pesquisa pela busca de novos antibióticos já é escassa, portanto seu manejo racional  através de condutas simples é fundamental. Quais seriam os impactos de uma era pré-antibiótica?